02 fevereiro 2007

fetos, filhos, fé

Uma nota prévia, e um pedido:

Como sou emigrante, não posso votar.
O que é, neste caso, uma particular injustiça para os emigrantes. Afinal somos nós quem está na linha da frente do embate de culturas, e tem de responder às perguntas escandalizadas - "então vocês levam as mulheres a tribunal por causa do aborto?!"
Não me dá jeito. Como se não bastasse o olhar horrorizado da miúda que disse à Christina "o quê, vais passar férias em Portugal? Coitadinha, é um país tão pobre...", como se não bastasse a funcionária dos correios querer que eu pagasse um selo mais caro porque dizia que Portugal não fica na Europa.

Mas, voltando ao assunto inicial: dado que não posso votar, peço a alguém que esteja com vontade de se abster o favor de ir votar por mim.

No "sim", por duas razões principais:

- Esta discussão sobre valores e respeito pela vida humana prende-se com uma procura de sentido e de dignidade para o nosso estar em sociedade. Que deve continuar, e que tem de se traduzir em actos de humanismo, mas que não pode passar pela ridicularização do Código Penal, mantendo uma lei que ninguém respeita.

- O abismo no olhar do Francisco, quando me contou que só nasceu porque o ginecologista disse à mãe dele que não respondia pelas consequências para a sua saúde se fizesse mais um aborto.

Gostava que o "sim" ganhasse, porque a dignidade humana não se promove com soluções simplórias de crime e castigo, e gostava que todos os que participaram nesta discussão tivessem consciência de que o resultado deste debate não é um ponto de chegada mas um ponto de partida para muito trabalho - e para ele são chamados todos os que pensam que um feto significa muito mais que um aglomerado de células.



Dito isto, gostava de acrescentar algumas notas soltas:


1.
Andamos a falar no direito do feto à vida, mas ninguém refere as marcas psicológicas que podem ficar em alguém que não foi desejado pela mãe.
Mesmo que seja dada para adopção, que perspectiva afectiva tem uma criança que passou 9 meses a ser considerada um trambolho?
Será que é realmente positivo para o feto que a sociedade lhe salve a vida por recurso ao Código Penal?
Os psicólogos, os psicanalistas, os da psicoembriologia que digam o que sabem sobre a forma como as pessoas ficam marcadas pelas sensações intra-uterinas.

Eu, que pouco percebo disso, dei uma volta pela internet e encontrei várias pistas: aspectos biopsicológicos do comportamento do feto (psicoembriologia), projecção da embriologia no estudo da personalidade, registos emocionais do feto (chamados de arcaicos).
E até um artigo em quase chinês, sobre "Embriogênese do aparelho psíquico: introduçao ao estudo dos estádios iniciais do ego".


2.
Incomoda-me, na discussão sobre o aborto, o modo como se tenta simplificar e reduzir a linguagem binária algo tão complexo. Bem sei que, se se discute a interrupção voluntária da gravidez, alguém tem de meter a mão na massa e começar a discutir os detalhes, mas será que o caminho passa mesmo por discutir números de células, fases de desenvolvimento do sistema nervoso, número de semanas, 0 ou 1?
O mesmo vale para a resposta moralista ou religiosa. Se fosse assim tão fácil, simplesmente dizer "é vida humana, ninguém tem o direito de a matar"...
É essa a sociedade que queremos, uma sociedade que se deixa imbecilizar por simplificações? Pior: uma sociedade que se deixa dividir em dois campos como se se tratasse de um campeonato de futebol, quando o que está em causa é um profundo sofrimento de algumas pessoas?


3.
Pessoalmente, vejo a gravidez como um momento de transcendência, e não de excrescência facultativa. Não é um quisto, um embrião ou um feto, mas um filho que se vai formando, e um "terceiro" desde o princípio - já presente, e com uma presença transformadora, no próprio acto que lhe dá origem (como explica Françoise Dolto em "A sexualidade feminina" - mas isso é só para esotéricos que acreditem na Psicanálise em geral e na Françoise Dolto em particular). Em algum momento posterior (às vezes demora anos...) o "filho" dá lugar a "ser humano", mas desde o início há uma enorme carga simbólica que não pode ser ignorada. Corrijo: pode ser ignorada, sim. Mas eu teria dificuldades em integrar-me numa sociedade que negue ou ignore a carga simbólica desse particular conjunto de células.

E, já que comecei este ponto por "pessoalmente":
A Christina anunciou-se antes mesmo de me faltar o período. Mais: soube logo que era uma menina. Afirmou-se em mim com uma força incrível. Desde o princípio foi uma presença - dependente de mim para viver e crescer, mas que eu sentia como um ser e uma vontade independente. Se tivesse de usar uma palavra, seria "forte".
O Matthias foi muito mais discreto. Senti que era rapaz, mas nem disso estava bem certa. Às vezes até me esquecia dele. Tentava falar com ele e cantar-lhe, como fizera com a Christina, e pressentia que isso não lhe agradava.
Essa maneira de estar comigo, revelada logo nas primeiras semanas, confirmou-se no parto: a Christina nasceu com olhos de raio-X - puseram-na no meu peito, e ela olhou-me com atenção e intensidade, como se me quisesse decifrar; o Matthias, por seu lado, ao ser pousado no meu peito fechou os olhos.
Hoje, a Christina participa e conversa, o Matthias faz o seu caminho e não quer que se intrometam.
Falando da questão do "eu embrional": se algo me tivesse obrigado a abortar, imagino que sentiria o aborto da Christina, mesmo muito antes da décima semana, de um modo mais trágico do que o do Matthias. Porque a Christina me impôs, desde o princípio, uma incrível vontade de viver e de se afirmar. Era claramente um "eu", diferente de mim. Não posso explicar isto com métodos científicos, mas é a minha experiência pessoal. E penso que não tem nada a ver com religião ou culpabilização social.


4.
Perante a questão do aborto, qual deve ser o papel dos cristãos?
Nunca o de acusador, o de inferno dos outros.
Não tomemos para nós o lugar de Deus no dia juízo final - além de ser uma arrogância tirar-lhe esse trabalho, ele saberá muito melhor que qualquer um de nós o que quer fazer connosco.
O nosso trabalho, enquanto por aqui andamos, é outro e resume-se à frase "vede como eles se amam".
O cristianismo não é um triunfalismo, é um percurso silencioso em busca do Cristo que nos chama.


5.
E que papel deve ser o da Sociedade?
Enquanto não nos acontecer a nós, podemos achar que é um problema dos outros, das vadias, das fúteis, das mal-amadas? Será, realmente?
Estamos conscientes da nossa responsabilidade em parte dos motivos que levam uma mulher a considerar a hipótese de um aborto?
Já nos demos conta de que o escárnio mata, tal como a dupla moral, tal como os modelos masculino e feminino socialmente aceites, tal como os modelos de consumo com os quais tão alegremente convivemos, tal como a organização do trabalho?
Vamos mudar isso, ou fica tudo como está?


6.
Penso que o problema não se resolve com a mera despenalização.
Entendo que:
- A despenalização do aborto resolve alguns problemas, e cria outros. Assusta-me que ocorra um esvaziamento do valor simbólico de uma gravidez.
- Não se pode simplificar nem banalizar: um aborto pode ser uma tragédia. É uma decisão difícil e com risco de consequências graves para a futura paz de espírito da mãe, e até dos familiares - mesmo nos casos de deficiência, risco de vida ou violação.
- A mulher em situação de conflito precisa de ajuda profissional para analisar com algum distanciamento e seriedade os motivos que a levam a dar esse passo: até que ponto está presa de condicionantes morais (ou de falsa moral), contextos de curto prazo, miragens de consumo? Há coacção de terceiros? Há solução para as dificuldades financeiras que prevê? Admite a possibilidade de levar a gravidez até ao fim e entregar a criança para adopção, ou decidir então se prefere ficar com ela?
- Se tomar a decisão de abortar, precisa de ajuda médica e precisará eventualmente (bem como outros elementos da família) de acompanhamento psicológico no futuro.

Após a despenalização, a sociedade tem de manter-se atenta para evitar mecanismos perversos.
Alguns exemplos:
- No princípio de 1989, uma jovem mulher da RDA engravidou. Como o namorado era um "Wessi", a ginecologista marcou logo uma data para o aborto. Nem lhe passou pela cabeça que a mulher quisesse ter um filho "ideologicamente impuro".
- Em 2001, na Alemanha, uma mulher que estava grávida do quarto filho fez os testes para trissomia 21. A pessoa que, ao telefone e sem a conhecer, lhe deu os resultados do teste, deu-lhe também este conselho: "minha senhora, já tem três filhos saudáveis, esqueça este."
- Em 1997, uma alemã que estava na 25ª semana de gestação descobriu que o filho tinha trissomia 21. Em menos de 24 horas foi feito o aborto, a criança foi largada no caixote do lixo. Ao fim de 10 horas ainda estava viva, e os médicos deram-lhe finalmente os cuidados de que necessitava. Escusado será dizer que hoje o problema menor dessa criança é a trissomia 21.

Não quero dizer com isto que a despenalização é o princípio de todos os desvarios.
Simplesmente, precisamos de ser inteligentes, atentos e sensíveis.

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