10 outubro 2006
Anna Politkovskaia - ouçam a sua voz
A Süddeutsche Zeitung publicou ontem de novo uma versão sintetizada do artigo encomendado à jornalista e publicado nesse jornal em 27 de Maio de 2005.
Aqui vai a tradução (rápida, rápida), como homenagem à coragem daquela mulher.
- Czar Vladimir - infalível e messiânico -
O presidente da Rússia já abandonou há muito o caminho para a Democracia que Boris Yelzin tinha iniciado
A Rússia de Boris Yelzin estava a caminho de se tornar uma Democracia; hoje, o nosso Estado combina oligarquia e autoritarismo. Na economia, o presidente Vladimir Putin substituiu os amigos de Boris Yelzin pelos seus próprios; os seus aliados fiéis do tempo dos serviços secretos foram premiados não apenas com a oferta das partes mais lucrativas das propriedades dos antigos protegidos de Yelzin, como também com altos cargos do Estado. Como resultado, já não se reconhece bem a fronteira entre grandes empresas e sistema económico estatal, entre business e serviço do estado. Deste modo surgiu um sistema corrupto que invadiu todas as instâncias da Administração, as estruturas de protecção da ordem legal e o conjunto do sistema jurídico. Os tribunais, que com Yelzin se tinham começado a tornar instituições para defesa dos direitos dos cidadãos e da sociedade perante o Estado, são hoje de novo um departamento do Kremlin. O mesmo se aplica à Procuradoria da República. E até os media, a quarta coluna de uma Democracia saudável, estão mudos.
A tudo isto se sobrepõe a guerra da Chechénia, que mudou a totalidade da sociedade russa. Há muito deixou de ser um conflito local, tendo-se tornado num instrumento para a militarização do país. A razão para a continuação desta segunda guerra da Chechénia, denominada "guerra anti-terror", passados já 5 anos, é simples: Putin e a Chechénia estão inseparavelmente ligados. O presidente deve o seu cargo antes de mais a uma guerra que surgiu no norte do Cáucaso em Setembro de 1999, menos de 6 meses antes das eleições. Só uma guerra poderia fazer do funcionário Putin, absolutamente desconhecido, sem programa e sem visão, um sério candidato à presidência. Do mesmo modo que a guerra fez de Putin presidente, fez o presidente Putin a guerra.
Durante os primeiros anos da guerra, muitos - entre os quais, eu - tinham ainda ilusões: talvez o presidente não faça ideia do que está a acontecer lá? Talvez o exército se tenha descontrolado e esteja a agir por própria iniciativa ao tratar os chechenos como pessoas de segunda classe, sujeitando-os a humilhações, torturas prepotentes, roubos, violações, martírios? Há muito que este tipo de explicação perdeu fundamento. Tudo o que o exército russo até hoje perpetrou na Chechénia, na Inguchetia e no Daguestão está sob o controle de Putin. A Constituição da Federação Russa faz dele, como mais alto comandante das forças militares, o actor principal neste inferno russo-checheno. É a política de Putin, a sua guerra pessoal, uma Blitzkrieg atolada, com características racistas claras e a terrível estratégia da "chechenização" do conflito: o governo instalou em Grosny um regime fantoche leal a Moscovo, e faz a corte aos personagens mais tenebrosos e sem escrúpulos da Chechénia.
Se os serviços secretos russos continuam a raptar pessoas, a torturar e a executar as suas vítimas sem investigação policial nem processo judicial, então trata-se de um caso simples de terrorismo de Estado dirigido pelo Kremlin. Esta política faz com que a resistência chechena se radicalize cada vez mais; que cresça o número de pessoas dispostas a vingar com violência a morte ou o desaparecimento dos seus familiares; que se pratiquem na Rússia terríveis actos de terrorismo. Durante todo o seu período de soberania, e em especial após a tomada de reféns do teatro "Nordeste" em 2002 e na escola de Beslan em 2004, Putin recusou decididamente toda e qualquer proposta de terminar o conflito da Tchetchenia. Putin, que toma cada vez mais os traços de um czar messiânico, aceita unicamente o seu próprio plano, já há muito desacreditado. E o Ocidente não apenas aceita Putin, como até o apoia.
No dia 8 de Março de 2005, Putin bloqueou todas as vias que poderiam conduzir rapidamente à Paz na Chechénia. Forças dos serviços secretos russos, enviadas propositadamente de Moscovo, liquidaram Aslan Maschadow, chefe da resistência chechena e legalmente eleito presidente do país em 1997. Por indicação de Putin, todos os participantes nesta operação foram condecorados.
Porque é que Putin deixou matar Maschadow justamente neste momento? Por dois motivos principais, o primeiro derivado de cálculo político e o segundo ligado à pessoa de Putin. Durante muitos anos, Maschadow foi o chefe da resistência chechena, e era nesse papel que servia melhor os interesses de Putin. O presidente não se cansava de repetir perante os media que Maschadow não passava de uma nulidade, insignificante e sem seguidores. No entanto, desde o outono do ano passado, Maschadow começou a desenvolver esforços para conseguir uma solução pacífica para o conflito, e o Ocidente começou a reparar nele. Em Janeiro de 2005 declarou uma trégua unilateral. Durante todo o período de guerra nunca acontecera algo assim. E, segundo a vontade de Putin, não devia voltar a acontecer. O antigo funcionário não suporta que alguém lhe roube a iniciativa e por isso seja até aplaudido. Putin entende isto como uma tentativa de o humilhar.
Quanto mais dura o período de soberania de Putin, menos lhe convém o simples papel de sucessor de Yelzin. Putin quer ser, ele próprio, o czar, e até maior que o "czar Boris Yelzin". Por isso começou a desfazer-se de todos aqueles que sabem que à sua soberania falta a substância de um czar bom.
E que papel desempenha aqui o povo russo? Como reage a opinião pública? A sociedade civil? Os intelectuais? A parte da sociedade russa com cargos políticos está dividida entre dois lados: o do povo e o do poder. E os adversários de Putin continuam presos em lutas de trincheiras, incapazes de se entenderem sobre a base de um partido democrático unido. Se deflagrasse amanhã na Rússia uma revolução como a da Kirgísia ou a da Ucrânia, isso não aconteceria nas cidades principais, mas na província. E à cabeça da oposição ao regime de Putin não estariam democratas, mas nacionalistas russos de extrema direita.
***
E mais um artigo, no Guardian. Para que a sua voz não se apague.
Pequeno detalhe: Eduardo Pitta refere que ela fez a cobertura do massacre de Beslan. Tanto quanto sei, ela bem queria, e até já ia a caminho de Beslan, quando foi impedida - por um misterioso caso de envenenamento...
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