Hoje passei mais uma etapa no meu processo de Weimarização: fui convidada para um café na casa de uma das mães da turma da Christina. Para falar das filhas das outras (imagino o que dirão sobre a minha quando estou ausente), de projectos para a escola e a turma, do que é preciso contar ao médico para conseguir uma recomendação para o sistema público de saúde nos mandar com os filhos a banhos três semanas pensão completa e mais quem se ocupe das nossas crias tudo incluído, coisas assim.
E às tantas:
- Que dia é hoje?
- Seis de Outubro.
- Ah, então amanhã é Sete de Outubro!
- Sete de Outubro? O que é que isso tem? (era eu, que não percebo nada destas coisas)
- Tag der Republik.
- Mas que república? O fim da monarquia? (outra vez eu, claro)
- Não. O nascimento da RDA.
- E o três de Outubro, o que significa? (era uma delas)
- Ah, isso sei (era eu, hehehe): dia da reunificação alemã, data da assinatura do tratado da reunificação.
- Não tenho nenhuma ligação emocional a esse dia. Se fosse o nove de Novembro...
- Esse não poderia ser, por causa do Pogrom de 1936. (esta foi em coro)
- O nove de Novembro foi numa quinta-feira, não foi? Eu morava em Berlim, e na sexta-feira, pois, foi na sexta-feira, encontrei uma colega que me contou "Ontem à noite bebi sekt no Ku'damm", e eu pensei "daqui a nada vai-me dizer que bateu com a mão na mesinha de cabeceira", mas ela contava e contava, e o sonho nunca mais acabava. Pouco depois chegou uma outra, que contava histórias semelhantes, e eu comecei a desconfiar, porque não era possível terem sonhado ambas o mesmo, e nunca mais batiam na mesinha de cabeceira. Demorei algum tempo a perceber que tinha realmente acontecido. Acompanhei-as no caminho para casa, e ao passar na Warschauerstrasse apercebi-me pela primeira vez que havia um portão no muro. É estranho como passei tantas vezes naquela rua, e nunca me dei conta da existência do portão. Estava escancarado. Resolvi tentar passar também. À medida que me aproximava, a multidão ia ficando mais densa, até parecia as manifestações de Maio. Quase nem chegava com os pés ao chão, ia sendo arrastada pela massa. Só pensava "de certeza que quando chegares à passagem a porta se vai fechar, de certeza que não consegues passar para o lado de lá, isto não pode estar a acontecer, isto não te vai acontecer, não vais ter essa sorte". Junto ao portão havia um polícia, enfim, um tipo fardado, que gritava "mostrem os documentos de identificação". Nós tirávamos o cartão do bolso, mas nem o conseguíamos abrir, nem o polícia conseguia ver alguma coisa. Do lado de lá do muro havia duas alas enormes de Wessis, que aplaudiam sem parar e nos ofereciam bananas e laranjas. Eu, que sabia a quantidade de pessoas que ainda vinha a caminho, pensei "vocês vão-se cansar depressa, daqui a nada começam a doer-vos as mãos". E desatei a chorar. Ao meu lado, e também entre os Wessis, havia muita gente a chorar. Passeei pelas ruas, e - logo eu, que não sou nada de me ligar a cheiros, - ainda me lembro da descoberta das lojas de flores. Na RDA também havia flores, crisântemos e assim, mas não era aquela variedade e aquela profusão. Passei o dia à procura de floristas, entrei em todas as lojas para saborear aqueles aromas, se alguma vendedora solícita perguntava "precisa de ajuda?" eu dizia que não, que só estava a ver, e continuava a cheirar - deslumbrada. Depois comprei algumas flores e um saco de tangerinas, lembro-me como se fosse hoje. E ainda hoje, se entro numa loja de flores, lembro-me dessa descoberta que fiz quando o muro caiu. Como é lógico, ao fim de alguns dias os Wessis cansaram-se de tantas emoções fortes, e começaram a mostrar má cara. Estavam fartos de continuar a dar os cem marcos de boas-vindas e de serem assim invadidos por pessoal sôfrego de comprar e ver. Mas os primeiros momentos, ninguém me tira aquela sensação incrível.
- Ninguém esquece (dizia outra). Ainda agora me arrepio com o que contas (e limpou uma lágrima).
- Eu esperei até sábado. No sítio onde atravessei a fronteira as pessoas já estavam fartas de tantos Ossis. Senti-me indesejada, foi muito desagradável.
- Para a minha família (contou a quarta), esse nove de Novembro foi um dia muito especial. O meu irmão tinha pedido autorização para abandonar o país, e ao fim de vários anos conseguiu-a. Ia sair no dia onze de Novembro. No dia nove, a família reuniu-se para se despedir. Estávamos num restaurante, todos tristíssimos por não sabermos quando e se o voltaríamos a ver, e de repente um dos empregados disse "abriram a fronteira!" e nós, chateados, "ah, sim, engraçadinho, conta outra..."
E depois mudaram de assunto, antes de começarem todas a chorar.
Quer dizer: começarmos.
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