12 setembro 2006

e que tal se trocássemos o nosso 11 de setembro por este de há 100 anos?

De um boletim informativo enviado pela "Palas Athena - filosofia em ação".


Um outro 11 de setembro


Passaram-se cem anos do dia em que Gandhi implementou no espaço político transformações significativas sem recorrer à violência direta ou simbólica. Quebrou o elo que sustentava a opressão mobilizando de maneira construtiva os oprimidos. O alvo estava bem identificado: revelar as injustiças de leis que beneficiavam apenas os detentores do poder. E, ao mesmo tempo, manter com eles um diálogo permanente, com o objetivo de evidenciar o erro e sofrimento que este provocava em milhares de pessoas.

Satyagraha: compromisso com a verdade, com a transparência, com a realidade que impõe os fatos, com a exigência ética de ser honesto para consigo e os outros – único caminho que viabiliza a convivência democrática e assegura a integridade da dignidade humana.

Transcrevemos a seguir a edição de um ensaio da Dra. Savita Singh, diretora do Memorial Gandhi em Nova Delhi, Índia, onde se celebra o centenário da gestação desse instrumento sociopolítico para promover mudanças coletivas e erradicar violências estruturais. A aplicação desse instrumento nas mãos de Martin Luther King, Aung San Suu Kyi, Oscar Arias Sánchez, Nelson Mandela, Desmond Tutu, Sergio Vieira de Mello e nas de milhares de movimentos sociais vocacionados para a Paz reafirmam a eficácia da não-violência como valor e expressão do legitimamente humano.


11/9/2006 - 100 Anos de Satyagraha


Foi em 11 de setembro de 1906 que Gandhi abriu caminho para o futuro declarando seu compromisso com a Verdade e a Não-violência, um caminho que ele chamou de Satyagraha.

O nascimento desta filosofia tem suas origens no regime de apartheid da África do Sul, que procurava impor uma lei a todos os imigrantes indianos. Caso a lei entrasse em vigor, estes seriam obrigados a se cadastrar junto às autoridades, ter suas digitais impressas, e carregar consigo um documento de identificação. A ausência de tal documento poderia ser punida com prisão, multas ou deportação. Mahatma Gandhi descreve vividamente os fatos ocorridos a seu biógrafo, Louis Fischer:



Em 11 de setembro de 1906 havia quase 3.000 pessoas no Empire Theatre de Johannesburgo. O salão reverberava com as vozes falando em tamil, telugu, gujarate e hindi, os idiomas da Índia. As mulheres usavam saris, os homens, roupas européias e indianas, alguns de turbante ou barrete, outros chapéus islâmicos. Entre eles havia ricos comerciantes, mineiros, advogados, trabalhadores, garçons, condutores de riquixás, empregados domésticos e ambulantes. Muitos eram representantes dos 18.000 indianos do Transvaal, agora uma colônia britânica, e estavam todos reunidos para decidir o que fazer diante da ameaça de leis discriminatórias contra os indianos.


Mesmo antes desta assembléia de 11 de setembro Gandhi já havia decidido: “antes morrer que se submeter a uma lei assim”. Mas Gandhi aconselhou a comunidade indiana a decidir com calma sobre o que estavam prestes a fazer. Não seria fácil assumir um compromisso dessa natureza.

O propósito desse compromisso não era impressionar os outros. Este seria um compromisso pessoal e cada um deles precisava decidir se teria a força interior para honrá-lo. Eles poderiam ser aprisionados, deportados, privados de todos os seus bens e conforto. A luta poderia durar um longo tempo. “Mas”, declarou Gandhi, “tenho certeza de que enquanto houver homens leais ao seu compromisso só pode haver um desenlace para esta luta – e esse desenlace é a vitória”.

Esse era o clima que reinava naquela reunião em 11 de setembro de 1906. O presidente da mesa aconselhou serenidade e os presentes se levantaram, suas mãos se ergueram e todos juraram não obedecer à lei anti-indiana caso entrasse em vigor.

A próxima tarefa era encontrar um nome para o protesto maciço que organizavam. Ele previa que o uso de “resistência passiva” traria mal-entendidos, e pensou em contrastar o termo com “força de alma”.

Não havia qualquer traço de passividade no jovem Gandhi. Logo depois da assembléia de 11 de setembro ele lançou um concurso pedindo sugestões para um nome apropriado para o protesto não-violento. Ofereceu um prêmio para quem encontrasse um nome para esse novo modo de oposição em massa, porém individual, contra uma injustiça governamental.

Maganlal Gandhi, um primo dele, sugeriu Sadagraha, que significava“firmeza empregada em boa causa”. Gandhi o transformou em Satyagraha – satya significa verdade, que é o mesmo que amor, e agraha significa firmeza ou força. Satyagraha, portanto, significa a força da verdade ou a força do amor.

Segundo Gandhi, Satyagraha é a defesa da verdade sem infligir sofrimento ao oponente, que deve ser afastado do erro através da paciência e da simpatia; algo que exige grande autocontrole. As armas do praticante de Satyagraha estão em seu interior.

Arguto observador da natureza humana, Gandhi registrava a lenta transformação que se operava na população branca da África do Sul. Aos poucos, a nova técnica ia ganhando admiradores, embora fossem minoria. À medida que o movimento avançava, os ingleses começavam a observá-lo com interesse. Embora os jornais ingleses escrevessem a favor dos europeus e das leis discriminatórias, de bom grado publicavam artigos de indianos renomados e enviavam repórteres às suas reuniões.

Gandhi foi o primeiro a ser aprisionado, e ao longo de sua luta foi condenado e cumpriu pena muitas vezes, tornando-se o líder do movimento contra a tirania governamental, até que um acordo aceitável foi obtido em 1914.

Satyagraha é uma estratégia de força que se baseia na verdade e é conduzida pela não-violência. Ela parece similar a métodos tradicionais, mas traz novidades que produzem conseqüências muito abrangentes. O objetivo último do Satyagraha não é simplesmente chegar à vitória, mas convencer os oponentes do cunho ético e validade de seus fins. Satyagraha pode ser considerado uma ferramenta para resolver conflitos e enfrentar injustiças.

Como coloca Joan V. Bondurant: “Aquele que utiliza o Satyagraha, desencadeia um movimento novo que pode mudar a direção e até o conteúdo das forças em jogo. O praticante envolve interativamente seu oponente de modo a transformar a complexidade do relacionamento, fazendo surgir um novo padrão. As sutilezas da reação do oponente ecoam de volta para o movimento do praticante do Satyagraha, e essas pressões de parte a parte têm amplo espaço para influenciar ações subseqüentes e até modificar o conteúdo das exigências e objetivos iniciais. Assim, o conflito se resolve de modo que os dois lados ganham e nenhum perde, porque o efeito do Satyagraha é levar os dois lados em direção à verdade”.

E nas palavras de C. Rajagopalchari, Satyagraha não é apenas uma técnica para resolver conflitos, é uma “força ética”. A não-violência, elemento imprescindível do Satyagraha, não é apenas um meio para obter aquilo que antes procurávamos obter através da violência e muitas atribulações. A técnica de Gandhi mobiliza uma arma que não se pode obter no mercado, mas que remete à existência da bondade em todos os seres humanos. Por esse motivo o apelo ético da verdade alcança o coração do antagonista, assim que percebemos que também ele possui humanidade.

As experiências com o Satyagraha reforçaram a fé de Gandhi na filosofia da não-violência como método eficaz de resistência à violência, e o prepararam para a luta pela libertação da Índia, conseguida em 1947.

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