19 janeiro 2011

ó tempo volta pra trás

A minha avó tinha uma vizinha com treze filhos. Na realidade teve mais que treze, mas alguns morreram. Era no tempo do "isto morre muito", da notícia que se espalhava célere entre a miudagem: "na casa dos Fulanos há um anjinho!" - e lá íamos nós em bando, atraídos pelo espectáculo da morte, das velas e das flores à volta da caixa de madeira sobre uma mesa. Treze filhos: chegava e sobrava para uma equipa de futebol, havia sempre alguém com quem jogar à macaca ou à bandeirinha na rua. A rua não era perigosa: era tão má tão má, que os condutores se viam obrigados a fazê-la em passo de caracol. Que belos dias passávamos por ali na brincadeira, apesar das interrupções ora porque o bebé chorava ora porque era preciso ir lavar a roupa no tanque comunitário ora porque eram horas de fazer o almoço. Naquela ranchada de filhos só havia duas raparigas. Na época em que brincávamos todos na rua elas deviam andar entre os 6 e os 12 anos, e asseguravam todo o trabalho doméstico enquanto a mãe andava na lavoura. Dos rapazes, só os mais pequenos brincavam connosco - no intervalo de segar erva para a vaca, catar folhas de couve para as galinhas, o que fosse preciso. Os mais novos, digo, porque os mais velhos, esses, em chegando aos 10 anos iam trabalhar. A minha avó zangava-se se nós comíamos na casa deles. A princípio pensei que o que lhe desagradava era a cozinha de chão de terra batida, a casa escura e suja. Mas um dia vi três irmãos a disputar uma cabeça de sardinha, e percebi.

Do outro lado da rua havia uma família que tinha também duas filhas, mas apenas uma muda de roupa e de sapatos. Uma ia à escola de manhã, a outra à tarde. Isto foi por volta do 25 de Abril, no tempo em que ir de Braga ao Porto levava duas ou três horas, e para a viagem Porto-Lisboa era preciso contar um dia.

A minha avó era uma das pessoas mais ricas da freguesia. Medido em "bens ao luar", entenda-se. Dava aos jornaleiros uma mesa digna - e até relativamente farta. Quando matava o porco, distribuía peças pela vizinhança, embrulhadas em panos de linho. Mas não nos deixava ler na cama, à noite, porque a lâmpada gastava muito. Tinha uma televisão, presente do tio da América, que não podíamos usar. Excepto, por muito favor, uma vez por semana, para ver a Pipi das Meias Altas. Ela via o Mundo Rural.

Nós próprios, filhos da classe média, usávamos roupa cheia de remendos, cotoveleiras e joelheiras. Tínhamos duas, três mudas de roupa, e uma pecinha mais domingueira. Roupa e sapatos passavam para os irmãos mais novos. As mangas dos casacos eram acrescentadas por mil artifícios, desde a barra de crochet à de imitação de veludo no mesmo tom.

Também tínhamos empregada doméstica, claro. Durante anos tivemos uma serviçal muito fiel, uma mulher vítima de violência doméstica, que tinha três filhos espalhados por irmãos e amas. Por volta dos 3 anos aquelas crianças aprendiam a tratar os filhos dos amos por "os meninos".

Depois da morte do meu pai, soube por um antigo amigo dele, um daqueles padres "difíceis", que a PIDE o andou a espiar por causa de uma iniciativa de ambos para promoção do desenvolvimento sociocultural dos minhotos. O padre via a tragédia das famílias dos emigrantes - os homens que saíam para Paris e Hamburgo, e se enchiam de desgosto em relação à própria família e às suas condições de vida - e achou que a única solução era melhorar o nível dessas pessoas. Ensinar as mulheres a tratar melhor da casa, a não deitar os restos da comida para o chão, a pôr cortinas nas janelas, a cuidar da sua aparência física... A PIDE desconfiou: parecia coisa de comunistas e agitadores.

Bom, também há aquela história do princípio dos anos 60, quando o meu pai organizou uma excursão a Lourdes com jovens agricultores da JAC, e alguns deles aproveitaram para dar o salto. Foi uma sorte o juiz ser um transmontano dos melhores - caso contrário, o meu irmão mais velho teria de ir à prisão para conhecer o pai. E sabe-se lá se eu nascia...

Era assim. Como é que as pessoas se esqueceram tão depressa disto?

***

Adenda: a Maria N. escreveu um post muito bom a propósito disto, que termina assim:

Ninguém esqueceu coisa nenhuma, mas a memória é selectiva, depende de quem pergunta e das intenções que quem responde julga ser as de quem pergunta. 

6 comentários:

teorias disse...

Excelente retrato da sociedade! Sim, infelizmente as pessoas esqueceram rapidamente. Penso que não querem ser recordadas da miséria em que cresceram, e têm a ilusão que o tempo não volta para trás. O tempo não volta, mas as condições de vida podem bem voltar.

snowgaze disse...

gostei muito deste post Helena!
costumo lembrar a história da sardinha que dava para 3 pessoas quando ouço alguém mais velho a dizer que antigamente é que era bom. é que eu nunca vivi isso, mas ouvi, e tenho boa memória. ;)
beijinhos

Helena Araújo disse...

Pois é, as pessoas esquecem-se depressa.

Mas não são só os portugueses. Ao pessoal da RDA às vezes também lhes dão ataques de saudades.

sem-se-ver disse...

:) ao final desta tua ultima resposta.

a memória é muito muito muito curta.

ademais, fiquei muito contente de partilhar contigo a pipi das meias altas.

Helena Araújo disse...

:-)
Ai a Pipi! Aquilo sim, é que eram
bons tempos!
Ai que saudades...

E os Pequenos Vagabundos, também andaste apanhada pelos Pequenos Vagabundos?
E o Lagardère?

Ai *suspiro* *suspiro* *suspiro*

;-)

Mais a sério: a Maria N. (segunda língua) tem um comentário muito bom sobre este tema.

pedro panarra disse...

Helena, belíssimo texto.
Já se tem perguntado por que motivo há um ódio tão grande a isto - a propósito do Wikileaks e do boicote bancário que foi fantasma. Eu acho que há uma hipótese ideológica forte para explicar isso.Esse grupo de pessoas só espera a oportunidade para dar o bote. Depois há motivos vários e compreensíveis para lamentar o mundo, tal como ele é.