19 outubro 2025

a perfeita golpada

 

Esta semana assistimos à perfeita golpada:

1. Depois de perder 800.000 votos (*), o tumor maligno da Democracia portuguesa pôs toda a gente a falar das burcas, e a discutir em termos de "eles que respeitem as nossas leis, que nós também respeitamos quando vamos à terra deles".
Facto é que a esmagadora maioria dos muçulmanos residentes em Portugal respeitam as nossas leis, e que o desrespeito, quando ocorre, é transversal às religiões (basta ir contar o número de cristãos que estão nas prisões, nomeadamente por femicídio). Mas o modo como o debate decorreu leva a crer que "eles", os imigrantes muçulmanos, são uma massa uniforme de abusadores e transgressores.

2. A proposta levada a Parlamento sobre a proibição de ocultar o rosto em espaços públicos tem uma longa introdução focada inteiramente na religião, nos direitos das mulheres, e no que outros países têm feito para combater símbolos religiosos no espaço público. Refere-se concretamente à "utilização de burcas, niqabs, demais trajes religiosos islâmicos e outras roupas que culminem em tal impedimento à exibição".

3. Três alíneas a destacar, no diploma:
"Art.2º, 1 - É proibida a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto.
Art.2º, 2 - É proibido forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou religião.
Art.3º, 2 - A proibição referida no número anterior é extensível em eventos ou práticas desportivas e manifestações."

4. Cada um tire as suas conclusões sobre este facto: na semana em que o seu partido perdeu 800.000 votos, e nos distraiu do desaire pondo o país a fazer discurso de ódio contra os muçulmanos, Pedro Frazão rejubila com a proibição de máscaras em manifestações da extrema-esquerda.

5. Pessoalmente, parece-me muito bem que se discuta o uso de máscaras no espaço público. E chamo pérfida à estratégia de discutir burcas e niqabs praticamente inexistentes na nossa sociedade quando o que se quer discutir são as máscaras nas manifestações de extrema-esquerda.

6. A única questão realmente interessante neste diploma é a proibição de forçar alguém a vestir o que não quer por motivos de género ou religião. Essa sim, valia a pena trabalhar a fundo - o que não será certamente feito pelo partido dos machos inseguros.

7. Pergunta para as pessoas preocupadas com a subjugação da mulher: se for proibido uma mulher sair para a rua de niqab, o que acham mais provável acontecer: (1) passa a sair à rua de rosto descoberto, ou (2) deixa de sair à rua?

8. Moral da história: infelizmente, é tarde para um pacto de Estado em Portugal. Na Alemanha, por enquanto, ainda existe esse esforço institucional de proteger a ordem democrática contra o avanço de forças consideradas antidemocráticas. Quando a AfD apresenta uma proposta de lei no Bundestag, seguem-se os trâmites legais habituais, mas a proposta nunca é aprovada (mesmo sendo sobre um tema neutro ou tendo algum mérito), para isolar politicamente este partido. Em certos casos, outros partidos apresentam uma proposta semelhante, e é esta que é discutida com seriedade e aprovada.



(*) Muito curioso: há 800.000 eleitores portugueses que se orgulham de ter metido no Parlamento português ladrões de malas, caloteiros, agressores de árbitros, pessoas que apagam mails oficiais e outras que mentem em tribunal - mas quando se trata da sua terrinha, já não querem lá especialistas da peixeirada, nem pessoas que pagam para ter sexo com menores, nem ladrões de caixas de esmolas... Odeiam "Lisboa", mas não se aperceberam que o que acontece em "Lisboa" lhes afecta ainda mais a vida do que as decisões do seu presidente da Câmara ou da Junta de Freguesia.

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