Já aqui contei que o meu coro e o Seda-i Aşk, do Conservatório de Música Turca, de Berlim-Kreuzberg, prepararam em conjunto um concerto que combinava músicas da cultura ocidental e da turca. Devido a outros compromissos, retirei-me deste projecto há cerca de um mês, ficando apenas com a responsabilidade da bilheteira no dia do primeiro concerto. E foi assim que dei comigo a assistir ao concerto do meu próprio coro sentada na última fila da igreja.
Bem sabia o que nos esperava, tanto mais que aprendera praticamente todas as peças. Mas nada me preparou para esse momento em que, no início do concerto, no altar da velha igreja berlinense, se ergueram as vozes de dois coros tão diferentes unidas num apelo:
Este verso naquele espaço, entre o crucifixo e os típicos tijolos maciços da arquitectura sacra berlinense, levou-me para um lugar sereno dentro de mim, algures entre a alegria e a evidência: é isto mesmo, é assim que está certo. Imaginei que o Deus do Novo Testamento - o Deus do sermão da montanha, o Deus que é amor - estaria naquele momento a sorrir comigo, igualmente comovido. E continuaria a sorrir numa das peças seguintes, "Alta Trinita Beata", de um anónimo no século XV, cantada de novo por ambos os coros. Talvez deixasse até escapar uma lágrima no "Verleih uns Frieden", de Felix Mendelssohn, o filho de judeus.
Nos dez anos que agora completa, o coro Bancanta já teve projectos muito ambiciosos, mas este HeimatDIALOG foi, para muitos de nós, o mais difícil. Aprender as músicas do coro turco obrigou-nos a mudar a forma de trabalhar. Deram-nos - a nós, habituados a ler notas e a contar tempos - partituras com função meramente indicativa. Protestávamos: "vocês não cantam como está escrito!" Mas, a pouco e pouco, fomos aprendendo a ouvir o ensemble instrumental turco, a entrar no espírito e no ritmo do momento, a deixar-nos ir com os outros. E aprendemos também a reconhecer as pessoas e a libertá-las da categoria "turcos de Berlim". O violinista Fahri Karaduman, que nos deixava mudos de encanto. A jovem Büşra Mercan, que tem dois professores de violino, uma alemã e um turco, e terminou agora o mestrado em tecnologia alimentar. A soprano que punha na mesa petiscos deliciosos, e nos sorria com orgulho. Ou a contralto que ficou ao meu lado num ensaio, e me contou que quando veio para Berlim, em criança, já falava três línguas: o árabe da sua etnia; o curdo, que era a língua da maioria na região onde nasceu; e o turco, que a Turquia moderna tornou obrigatório para todos.
Seis meses de trabalho e diálogo para chegar àquele concerto: a cantar uns com os outros as músicas de uns e dos outros.
Algumas das peças foram cantadas por apenas um dos coros. O meu apresentou A Little Jazz Mass, de Bob Chilcott, que é também um diálogo entre duas margens de Heimat da cultura ocidental: a liturgia latina e o jazz.
Mas não só de religião vive a Heimat. O programa deste diálogo incluiu canções de amor ora em turco ora em alemão, e várias composições berlinenses, dos anos vinte aos anos cinquenta, entre as quais "Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt" (estou pronta para o amor, dos pés à cabeça), que conhecemos de Marlene Dietrich no filme Anjo Azul, e "Heimweh nach dem Kurfürstendamm" (saudades do Kurfürstendamm), peça composta em 1949, em pleno bloqueio soviético, lembrando a mais famosa avenida da parte ocidental da cidade, que nessa época ainda estava em ruínas. Canções sobre o desejo de ser feliz e de partir em busca da felicidade, sobre a alegria e sobre o mau feitio dos berlinenses, sobre as saudades de casa - canções da Berlim, às quais o ensemble de instrumentos tradicionais turcos emprestava um cunho particular. E mais uma vez me comovi a ouvir os nossos companheiros do coro Seda-i Aşk a cantar em alemão "Ah, tenho tantas saudades do Kurfürstendamm, tenho tantas saudades de Berlim!"
Ali estavam dois coros a dizer com música que, independentemente da nacionalidade, da religião, da cor dos olhos, e do lugar onde nascemos: todos queremos amor, todos andamos em busca da felicidade. E todos temos direito a ser parte da cidade que amamos.
No final do primeiro concerto, o nosso maestro exclamou alegremente: "Um projecto que devia ser visto em toda a cidade de Berlim!"
Penso que é bem mais do que isso. Bom seria que projectos como este fossem repetidos por muitos outros coros em toda a Alemanha, em toda a Europa. Porque precisamos cada vez mais de aprender a ouvir-nos mutuamente, olhar nos olhos daqueles a quem chamamos "os outros". Precisamos de aprender a estima mútua.
Porque, como escreveu Goethe,
A tolerância devia ser um sentimento transitório: tem de dar lugar à estima.
A indulgência ofende.
Venham mais polifonias assim! Venha a harmonia.
(Oh, Alá, abençoa! Dá, Senhor, a tua paz ao nosso tempo.)
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