Ainda a propósito da decisão do ministério da Educação de tirar "conteúdos ideológicos" da disciplina de Cidadania, e tentando chegar ao essencial:
No princípio da minha adolescência, passava os intervalos entre aulas a conversar com uma amiga. Andávamos no recreio para lá e para cá, muitas vezes íamos de braço dado. Um dia, do meio de um grupo, uma aluna atirou-nos: "vocês são lésbicas!" Como se atira uma pedra.
No princípio da sua adolescência, a minha filha contou-me que os colegas da turma se riam de um deles e lhe chamavam "hermafrodita". Avisei a mãe do miúdo, que me disse depois que o filho já estava habituado e não se importava.
Será que não se importava realmente? A filha de amigos meus foi vítima de bullying na escola secundária, desenvolveu uma série de sintomas psicossomáticos, mas decidiu não contar nada aos pais para não os angustiar. A partir dos dez anos, a sua vida na escola foi um inferno quotidiano e vivido em profunda solidão.
Para identificar um inimigo contra o qual consiga arrebanhar eleitores, a extrema-direita inventou o fantasma da "ideologia de género", dos "woke", ou do "marxismo cultural". Como os monstros debaixo da cama: ninguém sabe o que são, mas dão muito jeito para meter medo. Diz-se que é preciso "proteger as nossas crianças dos perversos que as querem perverter".
No auge do delírio, os estrategas da seita MAGA inventaram o risco de um rapaz sair para a escola de manhã e regressar a casa feito rapariga.
Na realidade, o verdadeiro risco é este: uma criança sair para a escola de manhã e regressar a casa infeliz, insegura, e com ideias de suicídio. Porque a escola pode ser também um lugar de maldade, de muita violência verbal - numa altura de especial vulnerabilidade, nomeadamente em questões de orientação sexual e de vivência da sexualidade e da afectividade -, e de muito sofrimento para as vítimas.
Para os políticos, a questão essencial tem de ser esta: deixem as crianças em paz! É lamentável, é inacreditável e é imperdoável que um governo faça concessões à direita ultra-conservadora à custa do bem-estar das crianças.
Nenhum governante pode chamar "amarras ideológicas" à responsabilidade da escola em promover um ambiente de convívio são, onde ninguém seja perseguido ou estigmatizado por qualquer motivo, e em particular pela sua orientação sexual ou identidade de género.
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Recomnedo muito a leitura deste texto de Adriano Batista:
Cidadania: "amarras ideológicas" ou uma arma de arremesso político?
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