27 janeiro 2024

esfregar sal na ferida

Tenho-me perguntado muitas vezes o que estará na origem da escolha do pior horror nazi como termo de comparação para o que Israel - ou o governo de Netanyahu - está a fazer em Gaza (*).

De onde vem esta facilidade (talvez até: este prazer?) em dizer "Holocausto" quando falamos dos crimes cometidos por Israel?

Não me lembro de ver esse epíteto aplicado aos bombardeamentos do Reino Unido e dos EUA na segunda guerra mundial. Entre outros: Hamburgo (34.000 vítimas mortais em 10 dias), Dresden (25.000 num dia só), Hiroxima e Nagasaki (pelo menos 100.000 pessoas instantaneamente mortas). Não se disse que o agente laranja - que ainda hoje contamina o solo e é responsável pelo nascimento de crianças com gravíssimos problemas de saúde - era o Holocausto dos vietnamitas. Quando, no ano 2000, Grozni foi destruída praticamente até à última casa, sem qualquer respeito pelas vidas civis (chegaram a bombardear o corredor humanitário), não se falou em Holocausto, nem ninguém chamou nazi ao comandante dessa "operação contra o terrorismo", Wladimir Putin. Apesar de haver tantos paralelos entre o actual horror de Gaza e o que Putin fez recentemente nas cidades sírias ou em Mariupol (lembram-se de Mariupol? a maternidade bombardeada, a mulher em trabalho de parto a ser levada de maca para outro local, onde mãe e filho acabaram por morrer, o ataque ao centro de transporte de refugiados, o corte no fornecimento de água, electricidade, comida e medicamentos, os pseudo-corredores humanitários, a deportação forçada de milhares de crianças para a Rússia, as pessoas a comer animais vadios e os animais vadios a comer cadáveres humanos que ninguém podia enterrar dignamente), não se generalizou a ideia de que ali estava a acontecer um Holocausto.

Também não acontece quando se denuncia a esterilização das mulheres uigures, e os campos de reeducação e trabalho forçado para esse povo, na China, ou o genocídio dos Rohingya em Myanmar, ou o genocídio dos Yazidi às mãos do Daesh.

Esses casos, que são contemporâneos da tragédia Israel/Palestina, são mencionados como crime de guerra, genocídio, crime contra a Humanidade. Mas quando se fala de Israel, rapidamente entram em cena as palavras "nazi" e "Holocausto".

Porque será?

Há dias, em conversa com um amigo alemão, ele comentava que a acusação feita nestes termos nos alivia da nossa vergonha. Quando, na Alemanha, se diz que Israel (ou o governo de Israel) se comporta como o regime nazi, e se compara os bombardeamentos de Gaza ao Holocausto, está-se a constatar que afinal "os judeus são iguais aos alemães". Também eles são capazes de cometer esses horrores. Não um horror equiparável a outros que infelizmente continuam a deflagrar no nosso mundo, mas aquele a que chamamos o horror absoluto, esse que mais choca e envergonha historicamente a Alemanha.

Parece-me que esta análise faz sentido. E acrescento a minha própria leitura, que é sobretudo um alerta. Acredito que, à semelhança do racismo que existe em nós mas dificilmente detectamos nos nossos comportamentos, na Europa somos também herdeiros de uma tradição milenar de anti-semitismo: desconfiança, rejeição, desprezo e humilhação dos judeus. Penso que é esse antiquíssimo hábito de humilhação dos judeus que nos leva inconscientemente a disparar "nazi" e "Holocausto" quando criticamos os crimes do Estado associado a este povo. Porque, no caso concreto dos judeus, estas palavras ferem muito mais do que as outras que escolhemos para criticar os horrores de Grozni e Mariupol, de Hiroxima e Nagasaki.

Que fazer, então?

Há um truque simples para evitar a armadilha dos reflexos condicionados pelo anti-semitismo e pela vergonha que nos dominam: manter o foco nos factos, independentemente do povo ao qual pertencem os seus autores. Falar dos crimes de Netanyahu em Gaza como falámos dos crimes cometidos por outros, nomeadamente Putin ou Xi Jinping. Atenção ao tempo verbal: falámos, ou seja, há que ter o cuidado de verificar qual foi o termo de comparação a que recorremos no passado para nos referirmos a crimes de guerra e a crimes contra a Humanidade cometidos por outros Estados que não Israel.

Ou então, ainda mais fácil: pura e simplesmente não se servir do Holocausto como termo de comparação.

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(*) Não me entendam mal: sei, como sabemos todos, que o que está a acontecer em Gaza é um horror que brada aos céus, uma terrível sucessão quotidiana de crimes de guerra, um enorme crime contra a Humanidade. E está a acontecer com o apoio de países como a Alemanha e os EUA, e com armas pagas pelos contribuintes desses países. Também sei que o Hamas mostrou a sua face sem máscaras no dia 7 de Outubro, e que, se pudesse, faria em Israel o que Israel está a fazer em Gaza. De ambos os lados se encontra o mesmo ódio e o mesmo desejo de expulsar o outro povo. Penso que Israel tem direito à autodefesa, mas não o tem direito de roubar e oprimir os palestinianos como tem feito durante décadas à revelia das regras do direito internacional. E que a compactuação dos países ocidentais com este processo de ocupação crescente põe em causa a imagem que têm de si próprios como missionários dos Direitos Humanos. Sim, Israel tem direito à autodefesa - mas não nos moldes desta guerra. Todos sabemos que Israel recorreria a meios bem diferentes para exercer o seu direito de autodefesa caso os túneis do Hamas corressem por baixo de uma cidade europeia, por exemplo. O desprezo pela vida dos civis palestinianos, bem patente no bombardeamento e na invasão de Gaza, é algo que escandaliza o mundo.

Que este escândalo sirva ao menos para toda a comunidade internacional se unir com firmeza e determinação, exigindo o cessar-fogo imediato, tanto ao governo de Netanyahu quanto ao Hamas. Ambos, já. Que haja consenso mundial para cessar o fornecimento de armas a ambos, e para pôr imediatamente em marcha o processo para a criação de dois Estados, nas fronteiras anteriores a 1967, com autonomia para Jerusalém e com forças militares da ONU a garantir a paz e o respeito da lei internacional para todos.


6 comentários:

consta disse...

Eu nunca percebi como é que seria possível o mundo deixar o holocausto acontecer, agora sei.
Aqueles que vão a manifestações contra o AFD mas não vão a manifestações pela Palestina são os mesmos que ficaram a ver o holocausto a acontecer e não fizeram nada. Será que as pessoas têm consciência que essa manifestação (tanto os manifestantes como a polícia) excluíram as pessoas que mais repressão sofrem na Alemanha??? Sim qualquer pessoa com uma bandeira da palestina, foi excluída!!! Já bandeiras de Israel, andavam por lá sem problema...Tanta hipocrisia........

Helena Araújo disse...

Um bocadinho de honestidade intelectual ficava-te bem, Constança. O problema não é a bandeira da Palestina, é o modo como as manifestações pró-Palestina se tornaram manifestações pela extinção de Israel. Não souberam separar uma coisa da outra, ou talvez até o tenham feito propositadamente, e agora vêm queixar-se, armados em sonsinhos.

Mais um triste exemplo de como a tragédia dos palestinianos é instrumentalizada em nome de causas que servem determinadas estratégias de poder: entre “From the river to the sea!” e “Cessar-fogo de parte a parte, já! Libertação imediata dos reféns e julgamento imediato dos prisioneiros em Israel!”, escolhem o primeiro (se estou errada, mostra-me imagens dos cartazes onde, nessas manifs, se exige a libertação dos reféns e se critica o Hamas. Imagens dos cartazes “from the river to the sea”, não precisas de mandar - andam por aí aos milhares). Portanto: escolhem a causa “from the river to the sea”, e depois vêm pressionar os que não aderem a essas manifs, e queixam-se por - na Alemanha! - não serem autorizados a manifestar-se a favor do Hamas e da extinção de Israel...
Pessoas que estivessem realmente preocupadas com a hecatombe que está a acontecer em Gaza fariam manifestações capazes de agregar o maior número possível de manifestantes contra esse horror, em vez de fazerem um braço de ferro infantil com o Estado alemão – certo?

Sim, há quem vá a manifestações contra a AfD e se recuse a ir a manifestações onde se defende a extinção de Israel, e onde até já chegaram a aparecer manifestantes com bandeiras do califado. É o meu caso. Não contem comigo nessas manifestações – mas seria a primeira a ir a manifestações que pressionassem o governo alemão para se aliar a uma comunidade internacional coesa, e determinada a avançar imediatamente para uma solução de dois Estados com as fronteiras anteriores a 67. Só não encontraria por lá muitos manifestantes palestinianos porque, infelizmente, a estratégia de poder do Hamas não inclui uma solução de dois Estados, e por isso os palestinianos não se sentem livres para se manifestarem a favor desta solução. Mesmo vivendo no estrangeiro, temem as consequências de erguer a voz para criticar o Hamas e grupos congéneres. O próprio TAZ fala desse fenómeno na Alemanha: nas manifestações pró-Palestina, não há lugar para palestinianos que critiquem o Hamas.

Helena Araújo disse...

E já que falas em hipocrisia, Constança: porque não criticas também a hipocrisia do Hamas , que se arma em libertador dos palestinianos ao mesmo tempo que instrumentaliza a vida dos civis ao serviço da sua própria estratégia de poder? Grandes libertadores, de facto... Quando é que o Hamas perguntou à população de Gaza se estava disposta a arriscar a vida dos seus filhos nesta deriva de violência rumo à guerra total? Bem sei que quem lança as bombas é Israel, e não tem perdão para esse crime hediondo. Mas também sei que o bombardeamento de Gaza é uma peça central no cálculo cínico do Hamas, ao mesmo tempo que se diz defensor dos palestinianos . Queres mais hipocrisia que isso?

Pobre povo palestiniano, mortalmente encurralado entre os criminosos radicais de Israel de um lado, os criminosos radicais do Hamas do outro, e abusado por tantos outros que aproveitam (e até contribuem para) o seu sofrimento porque lhes é útil à sua própria agenda de poder.


Quanto a perceberes agora como foi possível deixar o holocausto acontecer, posso dar-te um exemplo recente e chocante: o mundo assiste a um grupo de homens cegos de ódio a entrar pelas casas das famílias e a matar um a um velhos, mulheres e crianças, a violar mulheres com uma brutalidade extrema, a exibir os seus corpos seminus com grande entusiasmo, a levar bebés e crianças como reféns, e, perante tudo isto, há pessoas que relativizam, que dizem que “não foi tão mau como se diz”, e acham que há razões que justificam esta violência e esta brutalidade.
Não entendo como é possível alguém recusar-se a criticar o Hamas pelo massacre que cometeu no dia 7 de Outubro, e aplaudir por exemplo Varoufakis quando este se põe a desculpar o horror. Mas essas pessoas existem hoje - tal como há oitenta anos, quando deixaram que o holocausto acontecesse porque acreditavam que, por muito que custasse, havia razões válidas para aceitar o assassinato de crianças. Essas pessoas existem, organizam manifs nas ruas alemãs, e queixam-se que o Estado alemão as persegue.
Falaste do holocausto, aí tens a resposta. E digo-te a ti, com a mesma frontalidade com que respondo a quem me vier com a teoria de que o que está a acontecer em Gaza é um “mal necessário”. Porque me oriento por esta linha gritantemente vermelha: não há desculpa para matar civis. Seja qual for a causa, não há desculpa para matar civis.


Já agora, uma informação, Constança: não precisas de gastar tempo a enviar-me links para material onde se nota perfeitamente o dedinho manipulador da propaganda pró-Hamas. Vi o primeiro, vi o segundo, e passei a apagar todos os outros sem abrir. Mas avisa quando souberes de uma manif contra a violência de Israel e do Hamas, pela libertação dos reféns e pelo julgamento imediato dos que estão presos em Israel. Vou com todo o gosto, na linha da frente.

Ana Rita Moreira disse...

Um óptimo texto exactamente sobre este assunto, se ainda não leu: https://www.zeit.de/kultur/2023-12/masha-gessen-rede-hannah-arendt-preis-english

The Holocaust was singular in part because of how many people were killed over a short period of time. But even the Holocaust took years. People lived, had hopes, tried to make sense of what was happening, and resisted.

For my first narrative book, more than twenty years ago, I researched the Bialystok Ghetto, and in particular, the life and thinking of my greatgrandfather in this ghetto. It so happened that there was a fair amount of material: survivors had written memoirs; at least one young person had kept a journal throughout the existence of the ghetto; and a couple of survivors were still alive. My greatgrandfather was a leader of the Judenrat. He was well-known, and people mentioned him in their recollections. Early on in the existence of the ghetto, he tried to make life in it liveable, as did others he worked with. Food needed to be brought in. Waste had to be taken out. Safety needed to be maintained. Early on, in the name of safety, my greatgrandfather tried to stop young people in the ghetto from organizing a resistance. Closer to the end, in 1943, after the ghetto had been brutally and drastically reduced in physical size and population, my greatgrandfather was using the food trucks he was in charge of to bring weapons into the ghetto. These were used during the Bialistok ghetto uprising.

What changed? His political position changed. His imagination changed. At the beginning, he didn’t know what was going to happen. He didn’t know that the Holocaust was possible.

We do. We are not any smarter, kinder, wiser, or more moral than people who lived ninety years ago. We are just as likely to needlessly give up our political power and to remain willfully ignorant of darkness as it’s dawning. But we know something they didn’t know: we know that the Holocaust is possible.

Over the last few days, I have had lines from a novella by the Russian writer Valeria Narbikova, which I once translated, playing in my head. It’s a novella that is written as though the author were just learning to think, to recognize the world. Two recurrent phrases are: "If there is something, then what’s it like?" - a plea for a reference, a comparison - and another: "Something always precedes that which follows." When we compare, we are also comparing contexts and histories, and making predictions. This is, of course, part of what makes Holocaust comparisons so fraught: they predict the worst. One important objection I have heard to comparing Gaza to the ghetto: but there are no death marches out of Gaza and no death camps waiting for its inhabitants.

And this is why we compare. To prevent what we know can happen from happening. To make "Never Again" a political project rather than a magic spell. And if we compare compellingly and bravely, then, in the best case scenario, the comparison is proven wrong.



Ana Rita Moreira disse...

Porque obriga o agressor a ver-se ao espelho, a medir a pequena distância que separa o refugiado judeu do palestiniano, a descobrir que hoje está do lado do carrasco e não da vítima. O libelo do anti-semitismo é a explicação menos generosa e inutiliza, da pior forma, o que deveria ser um instrumento de alerta para os excessos da espiral supremacista em que Israel caiu.

Helena Araújo disse...

Quem falou em "carrasco" e "vítima" nesses termos? Eu não fui, com certeza.

Partindo do princípio que não está a dizer que o que a Alemanha nazi fez aos judeus é igual ao que Israel está a fazer aos palestinianos (porque, se estivesse, a conversa acabava aqui mesmo), cá vamos fazer um desenho:

Imagine-se uma pessoa que aceitasse esse argumento do espelho como válido, posta perante dois adultos que num determinado dia abusaram sexualmente de uma criança. Um dos adultos teve uma infância despreocupada e feliz, o outro foi vítima de abuso sexual sistemático desde que nasceu. E era filho, neto e bisneto de pessoas que foram vítimas de terríveis abusos sexuais durante toda a infância. A pessoa vira-se para o da infância feliz, e acusa: "no dia x abusaste de uma criança, o que é um crime ignóbil!" E depois vira-se para o outro: "como pudeste fazer a esta criança o mesmo que te fizeram a ti e ao teu pai e ao teu avô?!"

Esta pessoa não bate muito bem, pois não?

Por outro lado, falar em espelhos para uso de terceiros é sempre mau. Somos de um país que a seu tempo também cometeu as suas atrocidades (sei lá, Wiriyamu, por exemplo), um país onde se convida nacionalistas supremacistas a ir aos programas da manhã na TV fazer figura de fofinhos arrependidos, um país que acredita que é de brandos costumes e nada racista. Não temos autoridade moral para humilhar Israel e os judeus dessa maneira, para "obrigar o agressor a ver-se ao espelho"
Tanto trabalhinho para fazer em casa, antes de nos irmos armar em suprema autoridade moral dos outros!

Repito: é imperativo condenar Israel pelas atrocidades que está a cometer. É preciso parar estes crimes e dar finalmente início a um caminho para a paz duradoura entre os dois lados do conflito. Mas já temos palavras adequadas para falar do assunto. Não precisamos de ir buscar "Holocausto" e "nazi", especialmente se nunca usamos essas palavras para criticar outros países que cometem crimes iguais ou até piores que os cometidos por Israel.