23 janeiro 2024

a revolta dos cidadãos com sentido de decência


Perante o avanço da extrema-direita populista que se tem vindo a consolidar na última década, a maioria silenciosa da Alemanha fez finalmente ouvir a sua voz. Este fim-de-semana, mais de um milhão de pessoas saíram à rua para afirmar - alto e bom som, com todas as letras e com todas as cores - que querem ter uma sociedade aberta, com lugar para todos e para tudo, excepto para a banalização de discursos fascistóides. E que não admitem que uma minoria ruidosa e antidemocrática fale em nome do povo alemão e mine as bases do sistema democrático.

Foi a resposta espontânea à notícia que recentemente escandalizou o país: há cerca de dois meses, neonazis reuniram-se com empresários e membros do partido AfD ("Alternativa para a Alemanha") e da WerteUnion (algo como "União pelos Valores", um grupo ultraconservador que nasceu na coligação CDU/CSU em oposição ao que entendem ser a "deriva esquerdista" desta). Nesse encontro, debateu-se um plano de deportação de milhões de pessoas, incluindo alemães que sejam descendentes de estrangeiros, se forem vistos como "não assimilados". É certo que a exclusão e a diabolização dos estrangeiros é uma estratégia fundadora da extrema-direita alemã, e um tema que esta menciona até no Parlamento, mas nunca se formulara um projecto de deportação em massa com tanta clareza, nem se chegara ao cúmulo de propor expulsar do país pessoas com nacionalidade alemã.

Impossível não ver alguns paralelos entre esta reunião de 25.11.2023 na Villa Adlon e a Conferência de Wannsee, a 20.1.1942, onde se fez o planeamento logístico do Holocausto. Realizadas na mesma região, a 8 km uma da outra, em agradáveis palacetes junto a um lago, em ambas se manifestou um total desprezo pela dignidade humana e em ambas se revelou o diletantismo dos critérios: na Villa Adlon propuseram deportar "não assimilados", na Conferência de Wannsee chegou a falar-se na "aparência de judeu" como o critério que determinava se uma pessoa com alguns antepassados judeus devia ser enviada para os campos de extermínio.


"O racismo é nocivo ao amor"



O país assistiu, com fascínio e alívio, a esta "revolta dos cidadãos com sentido de decência", como lhe chamou um jornalista. A adesão popular às manifestações preparadas a toda a pressa suplantou de tal modo as previsões, que em algumas cidades foi preciso dá-las por terminadas bem antes da hora planeada, porque as ruas e as praças eram demasiado exíguas para todos os que queriam participar.

Em Berlim, apesar do frio (1ºC) e do chão escorregadio devido à neve e ao gelo, as pessoas aderiram em massa. Quando cheguei - vinte minutos depois da hora marcada para o início - havia tantos manifestantes em frente ao Parlamento e à Chancelaria que a polícia já estava a impedir a travessia do rio a quem vinha da estação central de caminho-de-ferro. A rua ao longo do Spree encheu-se com um cortejo interminável de pessoas rumando a uma ponte mais afastada, onde eram convidadas a juntar-se ao desfile já em curso, em vez de passarem para a outra margem do rio. Também ali a polícia condicionava o acesso à ponte, temendo que não aguentasse o peso de tantos manifestantes.


Preferi ir em sentido contrário, para chegar ao centro da manifestação, e comovi-me com os rostos na multidão que passava por mim. Comovi-me com o senhor que avançava de muletas sobre o gelo, com as famílias e as suas crianças bem aconchegadas em roupas quentes. Comovi-me com os cartazes artesanais, a começar por este, de mensagem tão simples:


"Quem está aqui, é de cá"

Outros diziam: - "Pensava que NUNCA MAIS era ponto assente" - "Será que os nazis que não respeitam a Constituição também são 'cidadãos alemães não assimilados'?" - "Digam-me: como vão deportar 23,8 milhões de pessoas? De Flixbus ou de Ryanair?" - "Quando AfD é a resposta, quão idiota foi a pergunta?" - "Populismo não é uma alternativa e fascismo não é uma opinião" - "Contra o ódio e a polarização na sociedade" - "Contra o egoísmo e o ódio" - "De todas as cores em vez de castanho" - "Faltam cinco minutos para 33" - "Ainda não é demasiado tarde"


"O racismo não é uma alternativa"

"Votar AfD é tão 1933!"

"Unidos contra os nazis" / "Por uma Alemanha de todas as cores"

"Nunca mais fascismo"

"Expatriar fascistas / Acabar com os paraísos fiscais / Tributar os super-ricos"

Alguns cartazes faziam-nos rir:

- "Os da extrema-direita rodam o quadrado no Tetris" - "Os nazis não são bons na cama" - "Estou tão furioso que até fiz um cartaz!"


"Os nazis comem falafel às escondidas"


"Alice, pensa na tua mulher!" (A companheira de Alice Weidel, uma das figuras mais importantes da AfD, é do Sri Lanka)


"Não há bolachas para fachos"


O cortejo em direcção à Friedrichstrasse parecia não ter fim. Ouvia-se frequentemente as palavras "resistir" e "firewall". Por vezes cantavam um cânone (cuja melodia se pode ouvir no vídeo deste link):

Defendam-se. Ofereçam resistência. Contra a extrema-direita e a agitação neste país Mantenham-se unidos! Mantenham-se unidos!


No momento em que os manifestantes repetiam "Say it loud, say it clear: refugees are welcome here!", foi anunciado o número estimado de participantes em manifestações nesse domingo: 350.000 em Berlim, 1,2 milhões em toda a Alemanha. Que alegria!

Na manifestação, notavam-se duas atitudes bastante distintas: de um lado, uma posição quase bélica de rejeição da AfD ("F*ck AfD", "Solução Final para a AfD", "deportem-se vocês", etc.); do outro, o foco estava sobretudo naquilo que se quer manter e reforçar: o sistema democrático e os seus valores. O que dava estranhas combinações de cartazes: por vezes via-se um "não ao ódio!" ao lado de um "nós odiamos a AfD!".

Havia certamente grandes divergências políticas entre os manifestantes. Alguns estariam ali também para expressar o seu apoio à actual coligação, que tem sido muitas vezes atacada de forma infame pelos partidos da oposição e por jornais que têm a sua própria agenda de poder. Outros quereriam exclusivamente combater a AfD, e de modo algum mostrar qualquer espécie de apoio ao governo. Muitos terão com certeza uma posição extremamente crítica sobre o estado a que esta sociedade chegou por via democrática, em particular no que diz respeito à crescente desigualdade de rendimentos e níveis de vida. Apesar das divergências entre os vários grupos e do tanto que todos têm para criticar, souberam caminhar lado a lado, unidos numa posição clara de recusa dos ataques ao sistema democrático.

O desfile já se iniciara uma hora antes, mas ainda havia muitas pessoas à volta do palco da manifestação. Começaram a pedir que ficássemos mais tempo por ali, porque as estações de comboio e metro estavam completamente sobrecarregadas. Ou, se tivéssemos de ir embora com urgência, sugeriam que saíssemos em direcção ao sul, à Potsdamer Platz. Foi o que fiz. E nunca a Porta de Brandeburgo me pareceu tão bela como nesse fim de tarde, quando avançava pelo caminho escuro da floresta juntamente com tantos outros que escolheram vir para a rua numa tarde gelada de Janeiro para se unirem numa declaração de amor à Democracia.





3 comentários:

CCF disse...

Obrigada Helena, este seu post salvou o meu dia. Haja esperança!

Albertina Costa disse...

Excelente Helena. Muitos parabéns

Nan disse...

Que bom! Tenho andado tão cheia de medo... Nasci numa ditadura, preferia que as minhas filhas não tivessem que passar por outra!