O país assistiu, com fascínio e alívio, a esta "revolta dos cidadãos com sentido de decência", como lhe chamou um jornalista. A adesão popular às manifestações preparadas a toda a pressa suplantou de tal modo as previsões, que em algumas cidades foi preciso dá-las por terminadas bem antes da hora planeada, porque as ruas e as praças eram demasiado exíguas para todos os que queriam participar.
Em Berlim, apesar do frio (1ºC) e do chão escorregadio devido à neve e ao gelo, as pessoas aderiram em massa. Quando cheguei - vinte minutos depois da hora marcada para o início - havia tantos manifestantes em frente ao Parlamento e à Chancelaria que a polícia já estava a impedir a travessia do rio a quem vinha da estação central de caminho-de-ferro. A rua ao longo do Spree encheu-se com um cortejo interminável de pessoas rumando a uma ponte mais afastada, onde eram convidadas a juntar-se ao desfile já em curso, em vez de passarem para a outra margem do rio. Também ali a polícia condicionava o acesso à ponte, temendo que não aguentasse o peso de tantos manifestantes.
Preferi ir em sentido contrário, para chegar ao centro da manifestação, e comovi-me com os rostos na multidão que passava por mim. Comovi-me com o senhor que avançava de muletas sobre o gelo, com as famílias e as suas crianças bem aconchegadas em roupas quentes. Comovi-me com os cartazes artesanais, a começar por este, de mensagem tão simples:
Outros diziam: - "Pensava que NUNCA MAIS era ponto assente" - "Será que os nazis que não respeitam a Constituição também são 'cidadãos alemães não assimilados'?" - "Digam-me: como vão deportar 23,8 milhões de pessoas? De Flixbus ou de Ryanair?" - "Quando AfD é a resposta, quão idiota foi a pergunta?" - "Populismo não é uma alternativa e fascismo não é uma opinião" - "Contra o ódio e a polarização na sociedade" - "Contra o egoísmo e o ódio" - "De todas as cores em vez de castanho" - "Faltam cinco minutos para 33" - "Ainda não é demasiado tarde"
Alguns cartazes faziam-nos rir:
- "Os da extrema-direita rodam o quadrado no Tetris" - "Os nazis não são bons na cama" - "Estou tão furioso que até fiz um cartaz!"
"Alice, pensa na tua mulher!" (A companheira de Alice Weidel, uma das figuras mais importantes da AfD, é do Sri Lanka)
O cortejo em direcção à Friedrichstrasse parecia não ter fim. Ouvia-se frequentemente as palavras "resistir" e "firewall". Por vezes cantavam um cânone (cuja melodia se pode ouvir no vídeo deste link):
Defendam-se. Ofereçam resistência. Contra a extrema-direita e a agitação neste país Mantenham-se unidos! Mantenham-se unidos!
No momento em que os manifestantes repetiam "Say it loud, say it clear: refugees are welcome here!", foi anunciado o número estimado de participantes em manifestações nesse domingo: 350.000 em Berlim, 1,2 milhões em toda a Alemanha. Que alegria!
Na manifestação, notavam-se duas atitudes bastante distintas: de um lado, uma posição quase bélica de rejeição da AfD ("F*ck AfD", "Solução Final para a AfD", "deportem-se vocês", etc.); do outro, o foco estava sobretudo naquilo que se quer manter e reforçar: o sistema democrático e os seus valores. O que dava estranhas combinações de cartazes: por vezes via-se um "não ao ódio!" ao lado de um "nós odiamos a AfD!".
Havia certamente grandes divergências políticas entre os manifestantes. Alguns estariam ali também para expressar o seu apoio à actual coligação, que tem sido muitas vezes atacada de forma infame pelos partidos da oposição e por jornais que têm a sua própria agenda de poder. Outros quereriam exclusivamente combater a AfD, e de modo algum mostrar qualquer espécie de apoio ao governo. Muitos terão com certeza uma posição extremamente crítica sobre o estado a que esta sociedade chegou por via democrática, em particular no que diz respeito à crescente desigualdade de rendimentos e níveis de vida. Apesar das divergências entre os vários grupos e do tanto que todos têm para criticar, souberam caminhar lado a lado, unidos numa posição clara de recusa dos ataques ao sistema democrático.
O desfile já se iniciara uma hora antes, mas ainda havia muitas pessoas à volta do palco da manifestação. Começaram a pedir que ficássemos mais tempo por ali, porque as estações de comboio e metro estavam completamente sobrecarregadas. Ou, se tivéssemos de ir embora com urgência, sugeriam que saíssemos em direcção ao sul, à Potsdamer Platz. Foi o que fiz. E nunca a Porta de Brandeburgo me pareceu tão bela como nesse fim de tarde, quando avançava pelo caminho escuro da floresta juntamente com tantos outros que escolheram vir para a rua numa tarde gelada de Janeiro para se unirem numa declaração de amor à Democracia.
3 comentários:
Obrigada Helena, este seu post salvou o meu dia. Haja esperança!
Excelente Helena. Muitos parabéns
Que bom! Tenho andado tão cheia de medo... Nasci numa ditadura, preferia que as minhas filhas não tivessem que passar por outra!
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