07 novembro 2023

lenha para a fogueira



Como ficaria o mundo se não houvesse redes sociais? Pessoalmente, eu perderia imenso. Mas: e o mundo?

Por estes dias, fujo do twitter. De cada vez que lá vou, encontro-o cheio de ódio, e de manipulações que excitam o ódio.

Ontem, por exemplo: na Alemanha, o escândalo do dia era um infantário que queria mudar o seu nome. De "Anne Frank" para "Descobridores do Mundo" (em alemão soa de forma muito positiva: abertura, curiosidade pelo mundo, iniciativa, dinamismo, etc.)

Esta decisão vem já do início deste ano, como parte de uma reformulação geral do funcionamento do infantário. Queriam ter um nome mais adequado a crianças daquela idade, e que estivesse ligado ao novo projecto pedagógico. Além disso, segundo a directora, os pais estrangeiros não se identificavam com este nome. ("Por que no te callas?", como dizia o outro.)

Lembraram-se de trazer o assunto para a ribalta justamente agora, num momento em que os judeus em todo o mundo se sentem ameaçados, em que o anti-semitismo na Alemanha é um tema central e o debate está a ser conduzido no sentido do reforço desenfreado de um primo daquele: o anti-islamismo.

Por estes dias, o caso apareceu posto nestes termos: "De repente, querem tirar 'Anne Frank' do nome de um infantário alemão!" (este "de repente" foi, como é óbvio, uma invenção do venenoso Bild), "Para não incomodar os imigrantes, querem outro nome" e, porque para o ataque ser completo ainda faltava reforçar a imagem negativa das regiões da antiga RDA, "na região onde em tempos um bando de neonazis queimou o Diário de Anne Frank".

Claro que o twitter foi ao rubro. E até os jornais sérios perderam o pé num finca-pé desnorteado.

Dá vontade de perguntar se está tudo maluco. Mas é pior: está tudo com vontade de acreditar nas piores maluquices, e de as ir atirar para as redes sociais com o prazer de quem mantém viva uma fogueira.

Ontem à tarde veio a notícia de que se recuou na decisão: de momento, o nome não muda. O que me parece mal.

Fosse eu o presidente da Junta daquela terra, e mudava. Miúdos de 3 anos - alemães ou não - não têm de ser confrontados com a tragédia de Anne Frank. Em troca, dava o nome "Anne Frank" a uma rua, a um hospital, a um liceu. Tirava de um lado, multiplicava do outro.

Aliás: para bem ser, como sinal de solidariedade para com os judeus alemães que neste momento se sentem isolados e à mercê do ódio, esta era a semana em que, em cada cidade alemã, se mudava o nome de uma rua, de um centro de dia, de um hospital. Infelizmente, nomes é algo que não falta: Anne Frank, Etty Hillesum, Janusz Korczak, e tantos outros. E em cada cidade haveria uma escola que esta semana ganhava o nome de alguém que se elevou acima do horror do seu tempo pelo exemplo de coragem ética: Sophie Scholl, Irena Sendler, Aristides Sousa Mendes, entre - felizmente! - muitos outros.

Esta parte, seria fácil. Apesar do que se diz nas redes sociais, sobre este assunto há um consenso vasto. E o país está a precisar de se unir em torno de iniciativas com este simbolismo.

Mais complicado seria tentar um olhar mais abrangente: uma Rua da Naqba, uma Praça de Gaza, um Hospital dos Mártires da UNRWA, uma escola Iqrit e um liceu Bir Am.

A ausência de consenso sobre isto é, também, lenha altamente indendiária para a fogueira que está a devorar a paz social.



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