27 abril 2023

um Grândola como quem lava a alma

 


No 49º aniversário do 25 de Abril, o cinema Arsenal, no centro de Berlim, exibiu o filme 48, de Susana de Sousa Dias.

Um murro no estômago: ouvir a respiração funda daquelas pessoas antes de começarem a descrever o que era estar à mercê dos sádicos torturadores da PIDE. E um horror dentro do horror, algo que eu desconhecia inteiramente: os testemunhos de antigos prisioneiros africanos a revelar que as prisões da PIDE nas colónias conseguiam ser ainda mais horrorosas. O terrível poder desumanizante do racismo.

Enquanto ouvia os testemunhos dos antigos presos políticos, dava-me conta do pouco que sabemos sobre o que acontecia nas prisões da PIDE, do menos ainda que sabemos sobre o que faziam nas colónias, e, ligada a esta ignorância, pensava na extraordinária resiliência do mito de que os portugueses eram colonizadores mais simpáticos, o tal povo de brandos costumes. Um sinal do poder da escola: 48 anos são várias gerações de portugueses a passar por aqueles bancos e a aprender a História de Portugal segundo a cartilha do Estado Novo. Vai demorar muitos anos a extrair de nós - e da herança que passamos aos nossos filhos - essas ideias que nos inculcaram, e que, por nos afagarem tão bem o ego, resistem aos factos que entretanto vão sendo conhecidos.

Sabia que após a exibição se cantaria o Grândola, e que os relatos daquele inferno desembocariam na canção libertadora. Ansiava por ela, para nos limpar de toda aquela sordidez. Mas não havia muitos portugueses na sala, e o Grândola não ganhou a força do uníssono de muitas vozes comovidas. O público alemão achou a canção interessante, mas não conhecia o seu significado. É o risco dos símbolos: podem transformar-se em folclore.

No final da sessão, fiquei a pensar que temos, como povo, de olhar de frente para a nossa História. Não basta cantar o Grândola e comemorar com alegria o fim da ditadura fascista. É preciso ensinar às novas gerações a escuridão de onde viemos, o horror de que somos capazes, a mansidão com que aceitamos a ignomínia. Só assim é que o Grândola continuará a ser um mapa para o nosso futuro comum, em vez de se tornar em apenas mais um elemento do folclore nacional.



Sem comentários: