Sobre a directora de uma escola primária na Florida, que - segundo afirmam os escandalizados - foi obrigada a demitir-se por ter mostrado uma imagem do David de Miguel Ângelo aos alunos, comecemos pelo mais simples: não foi por se ter mostrado aos alunos uma imagem dessa escultura que a directora da Tallahassee Classical School foi afastada, mas por não terem avisado os pais de que o iam fazer. Havia um acordo entre a escola e os pais sobre o procedimento em casos destes, e a escola não cumpriu.
Podemos discutir se o ensino da arte renascentista deve ser objecto de compromissos desse tipo com os encarregados de educação, podemos discutir se o castigo foi excessivo. Mas façamos um esforço para permanecer no plano dos factos, em vez de escorregarmos afincadamente na casca de banana que nos estão a estender.
Facto é que a Tallahassee Classical School é uma "charter school": uma daquelas escolas mais ou menos autónomas, financiadas pelo Estado mas fortemente influenciadas pelas comissões de pais. Em certos casos, como me parece ser o desta escola em concreto, trata-se de uma concessão do Estado a um grupo de pais conservadores. A alternativa seria as famílias optarem pelo home schooling, e as crianças ficarem inteiramente à mercê dos progenitores.
Sendo estas as regras do jogo, parece-me que é bem mais interessante discutirmos o contexto, em vez de embarcar numa informação dada de forma manipulada para excitar os ânimos e pôr o pessoal a uivar contra a censura, como se as regras tivessem de ser iguais no mundo inteiro e, obviamente, determinadas por nós.
Alguns comentários avulsos:
1. O que pensamos sobre a liberdade de cada um educar os filhos como muito bem entender? Será que a opinião consensual da sociedade sobre, por exemplo, a importância da Arte deve sobrepor-se à opinião de determinados progenitores sobre, por exemplo, o pudor ou a religião?
2. Nos EUA, o respeito pela liberdade individual é levado bem mais a sério que nas nossas sociedades europeias "de pensamento único" (para citar a expressão dos pais que procuram aquele tipo de escolas para proteger a sua própria diferença em relação ao consenso social).
Dei-me bem conta disso no princípio deste século, numa escola primária privada, em San Francisco, quando assisti ao embaraço da professora da minha filha para justificar a existência de um poster com a teoria evolucionista de Darwin na sala de ciências. "Tenho aquele poster na parede", explicava ela, "mas também leio às crianças a história de um Deus sem mãos que criou o mundo".
Como diria o outro: mas a Ciência, Senhor, porque lhe dás tanta dor?
Dei-me bem conta disso no princípio deste século, numa escola primária privada, em San Francisco, quando assisti ao embaraço da professora da minha filha para justificar a existência de um poster com a teoria evolucionista de Darwin na sala de ciências. "Tenho aquele poster na parede", explicava ela, "mas também leio às crianças a história de um Deus sem mãos que criou o mundo".
Como diria o outro: mas a Ciência, Senhor, porque lhe dás tanta dor?
3. Parece-nos algo longínquo e inteiramente alheio à realidade portuguesa? Lembremos o caso da disciplina de cidadania e do pai de Famalicão que usou os filhos para fazer um braço de ferro com o Estado português - vejo nele uma espécie de "Martim Moniz" de um grupo conservador que tenta invadir a escola pública para a coarctar no seu papel de construtora de coesão social e consenso sobre valores básicos.
4. Não tenho dúvidas sobre qual é o meu lado nesta disputa. Mas não posso ignorar que há outros lados, e que estão a exercer cada vez mais pressão na nossa sociedade, e que se não formos capaz de dar uma resposta inteligente vamos aumentar cada vez mais o fosso entre uns e outros.
5. Numa sociedade cada vez mais sensível às relações de força e de violência subjacentes ao discurso da maioria, achamos condenável que as escolas se comprometam a avisar os responsáveis de educação sempre que os alunos forem expostos a material que possa ser considerado ofensivo para alguns? É muito complicado e trabalhoso, mas a alternativa não é melhor: as crianças acabariam divididas por escolas que seriam verdadeiros guetos ideológicos, religiosos, étnicos, etc.
6. A hipersensibilidade de alguns pais da Florida perante a nudez daquela estátua de David faz-me sorrir, porque me lembra a visita de Hassan Rouhani a Roma, e o afã de cobrir algumas estátuas antigas para não provocar embaraço ao presidente do Irão. Na altura, essa decisão foi muito criticada segundo uma lógica de "nós" contra "eles". É um pequeno exercício de humildade darmo-nos conta de que também há disto do lado de cá, no nosso lado, esse a que chamamos "Ocidente moderno".
7. Mudando completamente de assunto: não sei como é com as outras pessoas, mas, nas duas imagens acima, só a de David em cuecas me faz olhar automaticamente para o resto do corpo. É assim que reparo mais depressa na beleza dos joelhos ou do seu six pack. Pergunto-me se é um reflexo condicionado do meu próprio pudor, que me desvia os olhos da roupa interior. Já a folha de figueira, os ramos com flores ou aqueles panos ridículos que contornam um dos lados das ancas e se aguentam como por milagre por cima dos genitais nas estátuas ou pinturas antigas têm o efeito contrário: hipnotizam-me a ponto de me esquecer de reparar no corpo que existe para além daqueles atavios.
5 comentários:
"...Sendo estas as regras do jogo, parece-me que é bem mais interessante discutirmos o contexto, em vez de embarcar numa informação dada de forma manipulada para excitar os ânimos e pôr o pessoal a uivar contra a censura, como se as regras tivessem de ser iguais no mundo inteiro e, obviamente, determinadas por nós."
"...Não tenho dúvidas sobre qual é o meu lado nesta disputa. Mas não posso ignorar que há outros lados, e que estão a exercer cada vez mais pressão na nossa sociedade, e que se não formos capaz de dar uma resposta inteligente vamos aumentar cada vez mais o fosso entre uns e outros."
"...Na altura, essa decisão foi muito criticada segundo uma lógica de "nós" contra "eles". É um pequeno exercício de humildade darmo-nos conta de que também há disto do lado de cá, no nosso lado, esse a que chamamos "Ocidente moderno".
Do seu texto, que merece reflexão, respiguei estes três parágrafos e fiquei confuso! Como é possível que a pessoa que assim se expressa, congruentemente, creio , seja capaz de "mandar às malvas" a argúcia de raciocínio quando analisa o iter da guerra a que a Ucrãnia esta sujeita?!
Deixe-me pensar um bocadinho...
Está outra vez a tentar relativizar o facto de um país ter invadido outro e de estar a destruir as suas cidades, a encher de terror a sua população e a raptar crianças para as reeducar à força?
Não, D. Helena Araújo, não estou a relativizar nada.
Vim à conversa para elogiar a abertura de espírito demonstrada neste seu novo texto. Pondo-o em contraste com o fanatismo que revela sempre que comenta o momento internacional, de modo especial a natureza da guerra. E reincidi, porque me preocupa o modo como as as ditas "elites" intelectuais no ocidente ignoram a realidade. É que se quiser seguir a trajetória que os verdadeiros beligerantes, EUA/Rússia (os ucranianos são apenas as vítimas), vêm seguindo desde 2008, não lhe será difícil encontrar factos que contrariam o visão reducionista que tem do caso. Diz-se por aqui que na Alemanha foi criminalizada a dissidência quanto à questão da guerra! Como está nesse país, deve saber se isso corresponde à verdade: se assim é, acha normal e democrática a situação? Será igualmente normal a destruição do Nordstream em prejuízo de todos os europeus? O que é que acha do caso? E, assumindo como certas as barbaridades sofridas pelos ucranianos que invoca, tem a mesma repulsa pelos actos do regime em Kiev quando bombardeia o seu povo no Donbass?! E, os 15 prisioneiros de guerra ucranianos assassinados pela Rússia chocam-na mais do que os 25 russos sujeitos a idêntico tratamento pelo poder ucraniano, segundo notícias da ONU?! Só entro nesta contabilidade macabra, para lhe explicar por que não entendo como pessoas inteligentes se deixaram manipular de modo tão grosseiro. E, especialmente, porque acredito que só uma opinião pública mundial significativa pode ajudar a parar esta guerra insana, exigindo a intervenção da diplomacia.
JA, venho apenas avisar que não voltarei a publicar comentários em que, a despropósito, abusar do meu espaço para fazer passar as suas ideias sobre a invasão da Ucrânia. Este post, por exemplo, era sobre o caso da imagem de David numa escola da Florida.
O blogger é gratuito, pode perfeitamente criar um blogue e missionar o mundo a partir dele.
Entendi, D. Helena! Grande democrata! Desculpe, enganei-me quando lhe bati à porta. Passe bem!
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