A Berlinale arrancou na quinta-feira com o filme She Came to Me, de Rebecca Miller. Também se podia chamar All You Need is Love, servia perfeitamente.
Mas comecemos pelo mais importante e tocante: a cerimónia de abertura. Onde Hollywood faz piadas à custa de si própria e dos outros, Berlim usa este evento importante do cinema para apontar o dedo ao nosso tempo. Como referiu a ministra da Cultura, Claudia Roth, lembrando as palavras de Brecht (que cito de memória): "Podemos cantar nos tempos mais negros? Sim, temos de cantar sobre os tempos mais negros."
O Irão e a Ucrânia têm um peso muito grande no programa, e foram o tema central da cerimónia de abertura. Muitos dos oradores lembraram realizadores iranianos perseguidos pelo regime. Na plateia, várias pessoas choravam. Um dos momentos altos foi quando Sean Penn apareceu no palco e contou que no princípio do ano passado estava em Kyiv a fazer um filme sobre um actor de comédias que chegou a presidente. No dia 23 de Fevereiro filmaram uma entrevista com ele, e combinaram que continuavam o trabalho no dia seguinte. No dia seguinte, o filme que ia ser sobre um actor que chega a presidente deu lugar a Superpower: o testemunho do início da invasão russa, que estão a passar na secção Berlinale Special. Zelensky apareceu no écran gigante. De pé, em frente ao écran, Sean Penn aplaudia-o, comovido. Sentia-se bem a forte ligação que tem ao presidente da Ucrânia, e ocorre-me que não poderia ser de outra forma porque, afinal de contas, assistiu ao vivo, dia após dia, em entrevistas e filmagens, à metamorfose do actor de comédias para o herói da resistência contra um inimigo poderosíssimo. Zelensky fez um discurso bem preparado, perguntado qual é o papel da arte perante o mal do mundo, e lembrando o filme "Nas Asas do Desejo" feito numa Berlim dividida, com anjos que não se deixavam aprisionar pelo muro. No final, a sala aplaudiu de pé. Também aplaudiram de pé o discurso muito emocionado de Golshifteh Farahani, a actriz iraniana que vive agora na França e este ano faz parte do júri internacional. Farahani começou por corrigir os oradores anteriores: o que está a acontecer no Irão não são protestos, é uma revolução. E o Irão precisa de nós. Os directores do festival explicaram que o mundo inteiro mostra-se em filmes em Berlim, e que decidiram tirar o urso berlinense do cartaz, para darem o lugar às pessoas e à diversidade do seu mundo. E quase pediram desculpa pelo tom festivo com que deram oficialmente início ao festival. Do conjunto da cerimónia, ficou esta ideia central: o papel da arte e da cultura como amplificador dos esforços daqueles que lutam pela liberdade.
O que não correu tão bem: - O par de apresentadores, um homem, uma mulher, uma negra, um branco - até aqui, tudo certo. O problema foi a apresentadora ter decidido armar-se em engraçadinha à custa do seu colega, fazendo um humor que o humilhava. De cada vez que ela reincidia, eu resmungava dentro de mim: "ó minha palerma, lembra-te disto: queremos justiça, não vingança!"
- O momento ridículo em que a directora da Berlinale, Mariette Rissenbeek, se pôs a falar dos patrocinadores do festival dizendo uma frase de publicidade para cada um deles. Menos, Berlinale, menos... - O Verti Music Hall, onde assisti à cerimónia: um pavilhão de concertos, transformado à pressa em sala de cinema. Com cadeiras em vez de cadeirões, e tão frio que tive de vestir o casaco de inverno. Bem feita, para não me queixar do Friedrichstadt Palast, e que me fique de emenda: é melhor não me queixar, porque as coisas podem sempre piorar.
Em termos logísticos, a Berlinale está a empobrecer. A Audi já não é patrocinadora (RIP, fantástica lounge da Audi mesmo em cima da passadeira vermelha do Berlinale Palast), e desde o ano passado deixou de poder contar com o complexo de cinemas do Sony Center. O festival espalhou-se mais pela cidade, com os cinemas muito mais distantes uns dos outros. Para quem gosta de ver vários filmes por dia, a situação fica um pouco mais complicada.
She Came to Me, o filme de abertura, foi leve, bem disposto e sem nada excepcional, excepto ser uma espécie de amostra do que está a mudar para melhor: o casting incluía vários não-brancos e um actor com nanismo que não fazia de "anão", mas simplesmente de compositor; nas personagens jovens reconheci a geração dos meus filhos: ponderados, com distanciamento interior, excelentes na comunicação.
Foi o dia zero. Quando tiver tempo, conto sobre o dia 1, e adianto já: se a Berlinale 2023 tivesse terminado ontem, já me tinha valido a pena. Ainda estou atordoada com os filmes que vi. Até já.
2 comentários:
dia zero porquê? parece-me ser dia 1
Como só tem o filme de abertura, vejo-o como o dia anterior àquele em que a máquina arranca a sério, com a exibição de dezenas de filmes ao longo de todo o dia.
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