23 janeiro 2023

protestos e causas


Queria falar sobre o tema do momento, a acção de um grupo de activistas trans que interrompeu a peça "Tudo sobre a minha mãe" no São Luiz, no passado dia 19. Mas antes de falar sobre o caso, sugiro que vejam (aqui) o vídeo do que aconteceu e ouçam o que Keyla Brasil diz. Ela apresenta-se de corpo e alma, com toda a angústia, toda a dor, toda a raiva, toda a urgência. Para mim, é uma cena dilacerante. E para vocês? 

Muitos queixam-se da violência desta invasão de um palco e do significado deste acto de ataque à liberdade da cultura. Entendo a frustração do público, entendo o temor do cancelamento, e entendo a necessidade de agir daquele grupo. Mais: invadir, interromper, ser excessivo e incomodar os outros é da natureza do activismo radical, desde sempre. E, conforme o caso e a causa, rimos, encolhemos os ombros, aplaudimos ou criticamos severamente. Ou será que algum dos meus leitores critica com a mesma convicção cada uma das invasões e interrupções que partilho na imagem acima? E vamos realmente propor que, doravante, em nome da ordem e da lei, todos os protestos sejam feitos por requerimento em papel azul de vinte e cinco linhas, com todo o juízo e civismo?  

Quanto ao motivo do protesto: acredito que um dia - e espero que não demore muito - nos vamos surpreender por, no teatro ou no cinema, darem um papel de trans a um homem ou a uma mulher cis. Tal como hoje causaria estranheza ter um homem a interpretar uma personagem feminina, e responder aos protestos dizendo que se trata de um excelente actor perfeitamente capaz de representar uma mulher, que representar não é apresentar-se a si próprio, e que ninguém tem o direito de questionar a liberdade do encenador ou realizador.  

O tempo em que era normal os homens tomarem no palco o lugar das mulheres e os caucasianos pintarem a cara para interpretar personagens negras já passou à História. O tempo de ser normal cis interpretarem personagens trans também passará. O caminho para lá chegar é que é pedregoso, infelizmente. Dá vontade de dizer, como Konstantin Wecker: "façam lá a revolução de uma vez, a ver se isto acalma." Uma revolução fácil de fazer: basta aceitarmos imediatamente que o natural é uma pessoa trans representar uma personagem trans, tal como é natural que uma mulher represente uma personagem feminina (ao contrário do que era entendido como "natural" antes do século XVIII).

Luta a luta, vamos avançando para um futuro mais justo para aqueles que determinadas épocas tiveram por hábito menosprezar. Gostaria que esse futuro chegasse mais depressa para os actores trans. E se acreditam realmente no que dizem sobre um bom actor ser capaz de representar tudo: pois que chegue então em breve o dia em que seja necessário recorrer a uma pessoa cis para um papel de trans pelo simples motivo de todos os actores e acrizes trans estarem ocupados a representar personagens cis...


Quanto aos comentários que se opõem à causa deste protesto:

1. "Ai, e tal, um actor representa um papel, não precisa de ser como a personagem para a representar bem, por este andar daqui a pouco só uma grávida pode representar uma grávida, e só um polícia pode fazer o papel de polícia".

É como imagino os argumentos do plano inclinado no século XVIII: "Representar não é representar-se a si próprio! Ponham-se com essas modernices de deixar as mulheres subir ao palco para interpretarem os papéis femininos, e um dia destes vão ver que até os negros querem, até os trans, e, se tivermos azar, até os alentejanos ou os cegos..."


2. "Ai, e tal, então agora os alentejanos vão exigir que só eles podem representar personagens alentejanas", li algures. 

Deixando de lado a questão da comparação de alhos com bugalhos, porque identidade de género não é propriamente equiparável a proveniência geográfica, diria que se houvesse queixas constantes dos actores alentejanos por serem permanentemente ignorados devido à sua origem, a ponto de nem sequer se lembrarem deles para representar alentejanos, teríamos de olhar bem para esse problema e teríamos de arranjar uma solução. Em primeiro lugar, por uma questão de justiça. Em segundo lugar, porque se os deixássemos a falar sozinhos, mais cedo ou mais tarde algum deles iria protestar de uma forma que nos incomodaria. Em terceiro lugar porque é muito bonito dizer que um bom actor consegue interpretar qualquer papel, mas o que mais há por aí é filmes que nos enervam por causa da tentativa mal conseguida de imitar sotaques e falares de uma região determinada. 


3. "Ai, e tal, então agora os papéis de cegos só podem ser representados por cegos? Lá se ia o 'Perfume de Mulher', esse desempenho brilhante do Al Pacino!"

Sinceramente: não sei. Os actores com deficiência visual que digam como é a vida deles, e se há injustiças que temos de corrigir. 
Mas há duas coisas que sei:
- Se o Al Pacino não fizesse o 'Perfume de Mulher', teria tido um desempenho brilhante noutro filme qualquer. Perdia-se aquele filme, ganhava-se outro igualmente excelente. 
- Um caso prático: a realizadora Cristèle Alves Meira conheceu o Duarte Pina quando andava a fazer castings para encontrar um actor com deficiência visual para o seu 'Alma Viva'. Por ter gostado tanto da sua personalidade e maneira de estar na vida, fez logo uma curta para o celebrar. É o filme Invisível Herói, que recebeu vários prémios, nomeadamente o "melhor filme europeu" no festival internacional de curtas de Clermont-Ferrand. Certamente haveria algum actor sem deficiência visual capaz de representar bem o papel daquele irmão em 'Alma Viva', e a história acabava ali. No entanto, ao procurar para o papel uma pessoa com deficiência visual, Cristèle Alves Meira acabou por nos enriquecer o mundo, porque deu a conhecer o Duarte Pina.


Em suma: escutar, tentar entender, abrir-se a outras realidades numa atitude de profundo respeito pelos Direitos Humanos - de preferência proactivamente, para não ser preciso chegar ao ponto em que os que são vítimas do nosso menosprezo avancem para um protesto radical.



9 comentários:

marsupilami disse...

Chocou-me a ordinarice da intervenção. O despropósito da forma como se apresentou perante o público. O facto de, no fundo, ter ido cuspir na cara daqueles que no palco estão do seu lado.

Que contraste com artistas ou activistas subversivos como Martin Luther King, Jim Morrison, Zeca Afonso, Pop dell'Arte ou Mler Ife Dada. A intimidação e a ordinarice puras não são subversivas, nem progressistas. Pelo contrário.

Jô Turquezza disse...

Dificil nos dias de hoje, para muitas pessoas, colocar suas expressões sem agredir e magoar ...
Sinal dos tempos?
Estou tentando entender!
Belo texto. Parabéns.
Beijos.
blogjoturquezzamundial

Vera Aleixo disse...

Da validade do protesto tenho pouco a dizer, das consequências já é outra história. Ser trans é, per si, uma característica pessoal que torna a pessoa num ator? Houve candidatos trans em casting? Houve uma opção consciente de excluir atores ou candidatos a atores por serem trans? A opção foi inconsciente? É preciso trazer o problema a lume, ótimo, faça-se, mas se as injustiças apenas mudam de campo parece-me uma revolução com pouca validade.
Tornar os silenciados em silenciadores tyraz pouco avanço civilizacional.

Helena Araújo disse...

maruspilami,
Cada um tem direito à sua opinião. Para mim, foi um momento fortíssimo do e de Teatro.

Helena Araújo disse...

Jô Turquezza,
eu deixei-me tocar pelo desespero daquela pessoa. É difícil escolher bem as palavras e o tom quando se passa por aquilo que ela passa.

Helena Araújo disse...

Vera Aleixo,
parece-me que é ao contrário: quem é trans deixa de ser considerado actor. Leia esta entrevista a Maria João Vaz - como actor, durante quase duas décadas teve trabalho no teatro. Quando se decidiu assumir a sua transsexualidade, deixou de ter trabalho. Tem andado a ganhar a vida no Burger King.

Sim, a produção chamou ao casting candidatos trans. Mas no fim, por falta de verba, decidiu entregar o papel de trans a um actor homem, que já desempenhava outros papéis na peça. Porque não decidiu ao contrário, entregar os 3 papéis a uma pessoa trans? E porque pôs um homem a fazer de mulher trans?
Claro que para uns terem trabalho outros não o vão ter. Mas porque é que os que não recebem o trabalho são sempre os mesmos?


https://www.nit.pt/cultura/teatro-e-exposicoes/falamos-com-maria-joao-vaz-a-atriz-trans-que-ficou-com-o-papel-na-peca-do-sao-luiz?fbclid=IwAR2E_M8ONzeC4ehjYGCTAc_AS5fLFHL4j6biFUAyhH30aM0LemDMRMxDLaU

marsupilami disse...

«Cada um tem direito à sua opinião. »

Já diria La Palisse, e com toda a razão. Acresce que, segundo a mesma lógica, cada um tem o direito a produzir a sua peça de teatro como muito bem entender, livre de intimidações. Direito até de considerar histriónica e absolutamente lamentável a figura feita pela criatura em fio dental. (Como diria o outro: tivémos Aristófanes, tivémos Molière, tivémos Dario Fo, ficámos exangues e hoje só nos resta o fio dental. )

«Para mim, foi um momento fortíssimo do e de Teatro. »

Nem vou discutir isso porque, não só não é disso que se trata, como, se fosse, ficava decidido com a La Palissada acima. O gosto de cada um a cada um diz respeito. Claro. O problema é que há um movimento de gente que pensa que, em nome de uma suposta moral superior (a sua, deles), têm o direito de impedir os outros de fazerem a arte tal como a entendem. É uma velha história, com pergaminhos entre a direita mais reaccionária. E, pior, mais insidioso ainda, que se arroga o direito a considerar que as suas legítimas (legítimas, sublinho) aspirações à justiça se sobrepõem, sempre que lhes der na veneta, a toda e qualquer outra consideração, valor, critério artístico ou perspectiva social. Note-se que não debatem, querem proibir. «É feike, é feike.» E assim, como corolário, negam a autonomia dos campos artísticos, que julgávamos ter sido conquistada pelas vanguardas do século XX. A forma frequentemente revela o conteúdo; conteúdo esse que, neste caso, tem uns tons totalitários associados (desconfio) a uma enorme ignorância.

Por que não fazem um concurso como faziam os Atenienses ? Cada dramaturgo escreve a sua peça, os encenadores encenam como muito bem entenderem, e no fim discutem-se os méritos de cada um. Ah, mas para isso era preciso que as pessoas se interessassem por teatro.

Helena Araújo disse...

maruspilami,
Tudo isso que diz é muito interessante, mas esquece um facto fundamental: há pessoas que são mantidas do lado de fora do teatro - e do resto, aliás.
O caso de Maria João Vaz - leu a entrevista? Durante cerca de duas décadas trabalhou como actor. Quando decidiu assumir a transsexualidade, e passar a ser actriz, deixou de ter trabalho no teatro.
Quer reformular o comentário que escreveu a partir da consideração deste facto?

marsupilami disse...

«Quer reformular o comentário que escreveu a partir da consideração deste facto?»

Não. Já cá faltava o apelo ao pathos... Era alguém em plena maturidade que sabia ao que ia. Não há sociedades perfeitas e a mera possibilidade de tomar essa opção é uma boa medida do caminho percorrido. Que tal comentar a partir da constatação deste facto? Que o Eugénio de Andrade ou o Pasolini poderiam hoje viver como os outros, sem ter de andar à facada pelos bas-fonds? ;-)

É chato fazer parte de uma minoria? É. Mas há múltiplas minorias; em particular, dentro das artes há aqueles que se afastam da doxa, por isso não arranjam "emprego", financiamento e não são distribuidos. Essa maneira de contar a estória - parece que descobriram ontem que o teatro existe e apenas para fins de agit-prop - só funciona porque as pessoas são profundamente ignorante da história do teatro e do cinema. São consumidores ocasionais de cultura, e borrifam-se para o resto. Quantos conhecem os filmes do Pedro Costa e se preocupam com os seus personagens? Esses personagens que não são "sexy", os mais marginalizados de todos, que não tem capital cultural sequer para fazer agit-prop «feike», mas que nos construíram as cidades. Contam-se pelos dedos das mãos quem os conhece. E o Pedro Costa é um cineasta maior.