09 agosto 2022

perdido por saias


Adolf Eichmann com o seu coelhinho (fonte)


Por causa de um livro que tenho andado a traduzir, hoje fui parar a um artigo do Spiegel escrito em 1961, pouco antes de começar o processo de Eichmann em Israel, sobre o livro "The Hunter", que é a autobiografia de Tuviah Friedman, o sobrevivente do Holocausto que passou 15 anos da sua vida a procurar Eichmann.

Diz o artigo que Eichmann não teria grande confiança no futuro do regime nazi, e por isso era extremamente cuidadoso com a publicação de fotografias suas. Ou seja: segundo o Spiegel, não havia nenhuma. Eichmann não dava a cara. [ O que me faz pensar no "Mancha Negra" dos livros do Mickey, lembram-se? Mas o Phantom Blot foi criado em 1939, ainda não podia ser inspirado nesta particularidade de Eichmann. ]

Tuviah Friedman sabia que Eichmann era um perdido por saias, tinha uma mulher em cada cidade por onde passava - e tratou de as encontrar. Começou por enviar o seu colega "Manos" no encalço da mulher de Eichmann, que vivia nessa altura em Linz. Devia aproximar-se dela, deixar pintar um clima, tornar-se íntimo ao ponto de esta lhe mostrar os seus... álbuns de fotografias de família. "Manos" não achou graça nenhuma à ideia: "Queres que beije a boca que o Eichmann beijou?! Ca nojo!!!"

A operação "Frau Eichmann" não teve sucesso. "Manos" via-a todos os dias, até as criancinhas Eichmann viu, mas fotografias, que era o que importava, isso é que nada.

"Manos" foi então enviado em nova missão, desta vez a Munique, onde deveria aproximar-se de Margit Kutschera, uma das duas mulheres que tinham animado as noites de Eichmann em Budapeste. Mas Margit era agora casada com um conde alemão, e não tinha o menor desejo que lhe lembrassem os tempos que passara com Eichmann.

Por fim (quando se chega ao fim de uma busca, é sempre "por fim"), encontraram, também perto de Linz, uma Frau Missenbach que tinha quarenta anos e se sentiu atraída por "Manos" - esse jovem de 24 anos, muito bem-parecido e com um sorriso de anjo.

A um primeiro encontro seguiram-se muitos outros, até que a Frau Missenbach abriu para "Manos" o seu álbum de fotografias, onde uma fotografia chamou a atenção deste. Era um amigo que morrera na guerra, disse ela. Mais tarde, um detective entrou na casa e capturou a foto, que foi levada para Viena, onde o "caído na guerra" foi identificado, e copiada para distribuir a caçadores de cabeças no mundo inteiro.

O resto é história: Eichmann foi descoberto na Argentina (porque a filha de um judeu alemão, Lothar Hermann, estranhara o profundo anti-semitismo de um rapaz que conhecera recentemente, e que afinal se descobriu ser o filho mais velho do criminoso nazi; o pai informou o seu amigo Fritz Bauer, procurador-geral na Alemanha, também judeu, e este informou Israel, porque temia que, se informasse a Alemanha, Eichmann viria a saber e poderia escapar de novo. Mesmo depois de a Argentina e Israel terem dado por encerrado o seu conflito diplomático resultante da captura de Eichmann naquele país por agentes estrangeiros, Lothar Hermann, que dera a primeira pista para o paradeiro do criminoso, foi preso e torturado na Argentina. Aquilo eram uns tempinhos que só visto...) e levado para Israel à revelia do direito internacional. Foi julgado e condenado, e de caminho serviu de modelo a Hannah Arendt para explicar a sua expressão "banalidade do mal".

Eichamnn foi, literalmente, perdido por saias.

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E é isto a minha vida: por querer saber o que significa realmente a palavra "Gesellschafterin" aplicada a uma tal de Maria Kutschera, descubro que foi o seu amor a saias que tramou Eichmann e que a Maria se calhar se chamava Margit; escrevo ao autor do livro a avisar sobre esse eventual erro (é ele próprio quem pede isso aos leitores no fim do livro, não me venham agora cá com coisas), depois escrevo este post, e eis como gastei duas horas com a palavrinha "Gesellschafterin". Se dividisse o que ganho com traduções pelas horas que gasto nelas, mais me valia trabalhar no McDonald's. Mas as traduções não me deixam o cabelo a cheira a fritos, ao menos isso.

PS. O livro deve sair por altura do Natal. Por decência, não tem "Auschwitz" no nome para vender mais, e de facto não é sobre Auschwitz, mas sobre o modo como os EUA decidiram integrar no sistema democrático alemão criminosos nazis directamente envolvidos no Holocausto, porque o novo inimigo eram os comunistas, e os nazis eram quem mais sabia sobre eles. Uma pessoa fica com os cabelos em pé, e percebe porque é que se diz que a Alemanha "é cega do olho direito". Entre muitas outras coisas. PPS. O autor do livro acabou de me escrever uma simpática mensagem, dizendo que tenho razão, que o erro vai ser corrigido na próxima edição, e que agradece imenso que o avise sobre tudo o que encontrar, e que adora tradutores que fazem isso.

Mora em Berlim, onde tudo é possível: um dia destes ainda acabamos a tomar um cafezinho para falar sobre o livro. Espero que pague ele, que é o autor de bestsellers, ao passo que eu ganho menos que a servir batatas fritas num McDonald's. (Ah, e escusam de perguntar o nome do livro. Lá para o Natal, pode ser que diga.) --- Fontes: - Spiegel, Tuvia auf der Pirsch, 28.02.1961 - Wikipedia, Adolf Eichmann


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