24 junho 2022

um anúncio feito para chocar

 

A trabalhar numa tradução, deparei-me com isto:


No livro "Saving One's Own: Jewish Rescuers During the Holocaust", Mordecai Paldiel conta que em 1943 os romenos começaram a prever a queda de Hitler, e queriam ficar nas boas graças dos poderes vitoriosos. Ion Antonescu propôs deixar sair do país os 70.000 judeus que ainda ali viviam, pedindo apenas que lhe pagassem as despesas de transporte. O secretário de Estado do Tesouro Henry Morgenthau Jr. levou o assunto a Roosevelt. Cavendish Cannon, dos Assuntos Europeus, argumentou que aceitar a oferta romena criaria um precedente perigoso: outros países onde havia perseguição a judeus podiam lembrar-se de fazer a mesma oferta. Significaria um convite a "novas pressões para asilo no hemisfério ocidental... tanto quanto sei, não estamos preparados para enfrentar o problema judaico em toda a sua dimensão".

O sionista Ben Hecht teve a ideia de publicar um enorme anúncio no New York Times, com o objectivo de chocar, despertar consciências, e pôr os judeus dos EUA a pressionar para salvar aquelas pessoas:

PARA VENDA à Humanidade
70.000 judeus
Garantidamente seres humanos
50 dólares a peça

"A Roménia está cansada de matar judeus. Matou cem mil deles em dois anos. Agora está a oferecê-los por um preço irrisório... Esta soma cobre as despesas de transporte... Atenção, América! É uma oferta sem precedentes! Setenta mil almas a 50 dólares a peça! As portas da Roménia estão abertas! Façam alguma coisa imediatamente!" 

(Dúvida da tradutora: "a peça", ou "cada um"? Escrever "peça" lembra-nos do léxico da escravatura, onde se contabilizava os capturados como "peças".)

Os EUA hesitaram, Por fim, a Alemanha acabou por convencer a ainda aliada Roménia a desistir desse projecto. 

Abro um momento de silêncio por 70.000 pessoas que podiam ter sido salvas, e ninguém quis salvar.

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Agora trocamos "judeus" por "africanos em barcos, no Mediterrâneo", e são os mesmos argumentos: não estamos preparados para enfrentar o problema da pobreza, da guerra e do aquecimento climático em África em toda a sua dimensão. Eles que vão morrer longe, já temos problemas que chegue... 

Mais silêncio. 

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Agora reparamos na parte do texto relativa aos palestinianos. "Atenção, Humanidade! Os árabes palestinianos não vão ser incomodados com a chegada de 70.000 judeus. Os únicos árabes que vão ficar incomodados são os líderes árabes que estão em Berlim, e os seus espiões na Palestina." (Leio "os seus espiões na Palestina" e lembro-me do cartaz russo recente a "informar" que na Suécia há muitos nazis.) Momento de silêncio pelos palestinianos, apanhados no turbilhão da uma tragédia na qual não tinham a menor culpa.

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Agora lembramos os nazis assassinos de secretária, os que tomavam decisões e assinavam papéis, os burocratas que se limitavam a cumprir ordens que tinham como consequência a morte de milhares de pessoas. E comparamo-los com os personagens desta história na América livre e rica, que encolheram os ombros à tragédia de setenta mil seres humanos. Agora tentamos descobrir as diferenças de fundo entre uns e outros. Mais silêncio. 

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E agora pensamos em nós. 
Sempre que há notícias de algum barco de refugiados parado num porto, e Portugal oferece-se para acolher alguns deles, tenho um sobressalto feliz: afinal é possível fazer melhor. 

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