24 junho 2022

pesadas heranças

 



A pouco e pouco, a Alemanha vai-se dando conta da herança que 16 anos de Angela Merkel lhe deixaram.

A fatal dependência energética do tirano Putin é o elemento mais visível. Mas:
- atire a primeira pedra quem tiver a certeza de que, no depósito do seu carro, só tem combustível proveniente de sólidas democracias respeitadoras dos Direitos Humanos;
- deixando de lado os óbvios interesses económicos, reconheço nestes acordos de fornecimento de energia entre os dois países um esforço político para estender a mão à Rússia pós-URSS. Infelizmente correu mal - mas também podia ter corrido bem, podia ter sido, de certo modo, o princípio de uma aproximação como a da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.

Outro elemento actualmente muito visível é o estado calamitoso das Forças Armadas. O Ministério da Defesa andou de mal para pior nas mãos de ministros que não tinham as competências necessárias para aquela hercúlea tarefa. É verdade que sabíamos há muito que os aviões não voavam, e que muitos dos tanques e camiões que ainda tinham peças para andar corriam o risco de as perder pelo caminho. Ouvíamos falar em problemas vários relativos à compra de armamento e de peças de substituição. E também na infiltração da extrema-direita. Mas estávamos em paz, não nos preocupávamos muito com isso. Tanto mais que vivíamos num mundo em que ninguém gostava da ideia de uma Alemanha bem armada e com um exército eficiente (enfim, preconceitos...).

Esses são os elementos que a guerra de Putin tornou mais visíveis. Mas havia outros:

A concentração crescente da riqueza num pequeno número de privados, e o aumento do número de pessoas a viver em situação próxima da pobreza. O número de pessoas que precisavam de receber apoios da segurança social apesar de trabalharem a tempo inteiro. Num país governado por partidos que têm "cristão" no nome, é obra. E não é preciso falar do potencial explosivo de uma situação destas.

O imperativo de reduzir a dívida pública (lembram-se do Schäuble a resmungar "têm de poupar! têm de poupar!"?) também deixou de herança as redes viária e ferroviária num estado inacreditável. Há - por exemplo - 4.000 pontes a precisar de ser urgentemente substituídas. Uma ponte de auto-estrada importantíssima está fechada há meses, outras pontes foram fechadas a camiões pesados, em breve mais pontes vão fechar - com prejuízos brutais para as empresas e situações insuportáveis para as populações ao longo das estradas locais por onde passam agora muitos milhares de carros e camiões todos os dias.

Em termos de digitalização, enfim... Há aldeias portuguesas mais bem servidas de rede de internet que Berlim. E há um atraso de décadas no que diz respeito ao aproveitamento generalizado das potencialidades da internet na economia, nas habitações e nas instituições públicas.

Até no evidente problema do aquecimento climático o falhanço foi rotundo. Em 16 anos não foi possível passar uma mensagem tão simples como esta: se lutar contra o aquecimento climático sai caro, não lutar contra ele custa muitíssimo mais. [ As regiões marítimas e junto aos rios que digam quanto andam a gastar em reforço de diques e barragens, e em reconstrução de cidades alagadas. Os agricultores que digam quanto andam a gastar em água, e a perder com as alterações bruscas de condições meteorológicas. Os bombeiros que falem das florestas a arder em áreas onde nunca ardiam antes. Ainda na semana passada houve dois incêndios a sul de Berlim tão grandes que o cheiro a queimado chegou a Dresden. Houve localidades evacuadas. Por sorte veio uma chuva repentina e forte que ajudou a apagar o fogo. Mas já recomeçou, já ronda Berlim de novo, e os bombeiros não sabem como dominá-lo. ]
E que dizer dos cuidados à terceira idade, da malha cada vez mais larga na rede de prestação de serviços de saúde? Dos enfermeiros e das enfermeiras a mudar de emprego porque têm demasiado trabalho e stress para aquilo que recebem? [ Conheço uma enfermeira de um serviço de cardiologia que me recomendou ir ter um ataque de coração - if any, claro - no Lidl, porque é lá que estão os melhores enfermeiros do serviço dela. ]

É esta a herança que Angela Merkel deixou à Alemanha. Pode bem ter sido o menos mau possível - quer dizer, outro chanceler podia ter falhado ainda mais estrondosamente os desafios estratégicos do país. Mas é aqui que estamos.

Está longe de ser a única herança que pesa ao país, e ao seu novo chanceler Olaf Scholz. Ainda na semana passada a Documenta de Kassel trouxe de novo à luz a cicatriz histórica que marca a Alemanha, ao retirar uma peça que tinha elementos antissemitas. O problema, segundo leio, não foi retirar a pintura, foi ter demorado tanto tempo a tomar a decisão de a retirar. E o assunto que de momento nos preocupa a todos: perante a invasão da Ucrânia, o chanceler alemão está a evitar o melhor que pode seguir o exemplo do seu antecessor, o Kaiser Wilhelm. Eis como eu, que nunca compreendi como foi possível a primeira guerra mundial ter deflagrado e tomado aquelas proporções, começo a perceber melhor que o difícil não é começar uma guerra. É mesmo ter a sabedoria de a evitar.


Sem comentários: