20 junho 2022

a "cancel culture" exercida pela maioria

Muito se fala da "cancel culture" que constitui um risco terrível para pessoas que "inadvertidamente" incorrem na fúria de grupos "que impõem o pensamento único" e fazem tudo o que podem para lhes destruir a existência.

Antes de falar dessa "cancel culture" das minorias, deixem-me mostrar o outro lado da questão: a maioria também tem "cancel culture", e exerce-a com o à-vontade que lhe é permitido pela "ordem natural das coisas". E o mais grave é que nem se dá conta disso.

Trago três exemplos:


1.
"Em setembro de 2000, (...) Manuel Serrão publicou um artigo no jornal "O Jogo" com o título "Calado que nem um melão" em que, para atacar e achincalhar o clube seu adversário (e também meu...), o Benfica, insinua que o seu capitão é gay e tem uma relação com um melão.

Dias depois, em 14 de setembro, o defunto pasquim "O Crime" publica uma "notícia" com o título "Um grego calado com cabeça de melão", em que, com base no artigo do Serrão, diz abertamente que José Calado, capitão do Benfica, tem uma relação homossexual com o cantor Melão, membro da então famosa boysband "Excesso".

Lançado o boato, nada mais o faz parar e a vida destes dois homens passa a ser um inferno.

Melão, que era um ídolo das teenagers amorangadas e iniciava uma carreira a solo, passa a ser gozado e insultado em todo o lado e, inclusive, num espetáculo para estudantes de Coimbra (!!), abandona o palco à terceira canção porque já não consegue aguentar a constante berraria daqueles futuros "doutores". Viu vários espetáculos cancelados e praticamente deixou de ser contratado.

José Calado, passou a ser conhecido por "Capitão Gay" e a sua vida um pesadelo, atacado por adeptos adversários quando as coisas lhe corriam bem e por benfiquistas quando lhe corriam mal.

No dia 2 de outubro de 2000, durante um jogo no estádio da Luz, em que o Benfica perdia por 1-0, os insultos e piadas a José Calado foram de tal dimensão que ele abandonou o campo ao intervalo, o que lhe valeu um processo disciplinar, a perda da braçadeira de capitão, a saída do Benfica e o início de uma rampa descendente na carreira.

Ambos, como é natural, tinham família, pais, irmãos, companheiras, amigos e todos esses foram também vítimas desse pesadelo perpetuado, sem nenhum peso na consciência, por centenas de milhar de pessoas que se pensam de bem.

Na verdade, quem destruiu a carreira e quase arruinou a vida destas duas pessoas, não foram o Serrão nem o pasquim "O Crime", foram todos aqueles que, sem pensar nas consequências, foram gozando com o boato, que para muitos deles era apenas uma brincadeira mas para pessoas concretas era um pesadelo.

Mas é melhor estar calado, porque é mais do que evidente que somos um país de brandos costumes, nada homofóbicos nem racistas..."

[Autor: António Moreira]



2.
"Doutor Freud, que memórias lhe poderei descrever? Voltar aos três anos e à queda do muro da eira, empurrado pela vizinha, mulher adulta? Ou prefere que lhe conte o apego a um brinquedo quando tinha quatro anos?

Doutor Freud, ao contrário de muitas crianças, como deve saber tão bem, nunca tive muitos brinquedos e todos os que havia lá em casa, uns de metal e outros já em plástico, eram herança das primas e dos primos que viviam na cidade grande. Lembro-me que descobri, num caixote de papelão pardo, uma boneca sem um braço, com um vestido todo rasgado e os lábios pintados com esferográfica vermelha; confesso que senti pena daquele brinquedo e adoptei-o.

Doutor Freud, tomei conta e brinquei com aquela boneca até aos oito anos; ao contrário de muitos meninos que corriam atrás de uma bola, eu embalava e contava estórias a uma boneca sem um braço - lá fora os miúdos chamavam-me 'mariquinhas' e 'menina'.

Inquietantes aquelas palavras que, de vez em quando, ainda entram nos meus sonhos e se transformam em monstros, capazes de devorar a vida."

[Autor: Joaquim Carreira]


3.
No Alentejo, há meia dúzia de anos, procurava um restaurante para almoçar com um grupo de amigos, entre os quais uma mulher com pele escura. Quando lhe propus entrarmos num restaurante para ver se tinham lugar, respondeu-me que era melhor ser o marido (de pele branca) a entrar comigo. Se fosse ela, o mais provável era dizerem que não tinham lugar.
"Já estou habituada" - rematou.
Podia acrescentar que esta minha amiga é mais inteligente, mais culta, mais educada e mais bonita que eu. E lembrar a história de quando o Nelson Évora, "a quem Portugal tanto deve", foi impedido de entrar num clube. Mas esse seria um discurso armadilhado, porque normaliza a ideia de que as pessoas dos grupos que a maioria cancela por sistema e sem se dar conta têm de ser mais do que nós para terem os mesmos direitos.


Se me parece bem o cancelamento de uns para alertar para o cancelamento de outros? Não.
Mas a mim é que não apanham a choramingar que "já não se pode dizer nada". Pelo menos, enquanto tiver noção do meu privilégio, e do ridículo em que incorro.

 




1 comentário:

Catarina disse...

Li e aqui continuo a pensar naquilo que acabei de ler. Que maldosas podem ser as pessoas. Todos os exemplos são revoltantes, mas o primeiro vai permanecer na minha mente por algum tempo.