06 abril 2022

citando: "num dos lados havia um grupo que era mau, e no outro lado havia um grupo que também era muito violento, e ninguém quer falar disso, mas eu vou falar agora."

 




Foto: Giorgos Moutafis (aqui)


No dia 5 de Abril, de manhãzinha, quando o mundo tentava recuperar das imagens de Bucha, José Manuel Pureza publicou um post onde dizia o seguinte: "Quando, entre 1945 e 1949, o Tribunal Internacional de Nuremberga julgou os comandos nazis por crimes de guerra e por crimes contra a humanidade, a defesa dos réus mostrou que os comandos militares aliados tinham tido comportamentos idênticos. Uma guerra é uma guerra. Há crimes de guerra e crimes contra a humanidade na guerra da Ucrânia? Claro que há e claro que não são só de um lado. Porque é assim uma guerra. Apurem-se os crimes e os criminosos, sejam quais forem, com todo o rigor. Porque são as mais básicas considerações de humanidade que estão em causa."


Este texto lembrou-me Trump a falar do atentado terrorista de Charlottesville, quando um admirador de Hitler com ligações aos grupos neonazis atirou um carro contra manifestantes que reagiam a uma manifestação da extrema-direita. Mais tarde, o tribunal considerou tratar-se de um atentado terrorista. Mas no preciso momento em que o país estava chocado com aquela violência, Trump achou por bem dizer que "num dos lados havia um grupo que era mau, e no outro lado havia um grupo que também era muito violento, e ninguém quer falar disso, mas eu vou falar agora."

O que temos no post de José Manuel Pureza é: 


1. Um caso antológico de whataboutismo

"Há crimes de guerra e crimes contra a humanidade na guerra da Ucrânia? Claro que há e claro que não são só de um lado. " Trump recorre por sistema a este expediente. A última coisa que eu esperava era ver o José Manuel Pureza a fazer o mesmo. 


2. Falsas equivalências que nos distraem do essencial

Excerto de The Atlantic, a propósito da reacção de Trump ao ataque de El Paso: “Whether it’s white supremacy, whether it’s any other kind of supremacy, whether it’s antifa, whether it’s any group of hate, I am very concerned about it,” Trump said. “And I’ll do something about it.” (Em bom português: "Apurem-se os crimes e os criminosos, sejam quais forem, com todo o rigor. Porque são as mais básicas considerações de humanidade que estão em causa.") In other words, to paraphrase the president’s reaction to white-supremacist violence in Charlottesville, Virginia, two years ago this month, there are some very bad people on both sides ("Claro que há e claro que não são só de um lado."). This is a bravura performance in missing the point—either intentionally or not. As he goes to visit the city where a racist attacker killed 22 people, Trump cannot keep focused on the ideology that led the man to kill. Instead, he’s engaging in whataboutism, and he and his allies are creating false equivalences that distract from the point." 


3. A cortina de fumo: iludir o essencial com a exigência de conhecer "todos" os factos

Perante as imagens que nos chegam de Bucha (e de tantas outras cidades ucranianas - nomeadamente o teatro de Mariupol, junto ao qual estava escrito "crianças" em letras garrafais), o mundo inteiro capta o essencial: a violência do exército russo contra a população civil. 
Mas José Manuel Pureza reage como Trump reagiu em Charlottesville, quando disse: " É preciso algum tempo para ter acesso aos factos. Os factos ainda não são conhecidos. [...] Honestamente: as pessoas ainda não conhecem todos os factos."
Pureza exprime-se com mais desenvoltura que Trump, mas a lógica é a mesma: 
"Apurem-se os crimes e os criminosos, sejam quais forem, com todo o rigor." Admito que tenha escrito este "seja quais forem" sob o efeito da dúvida que a extraordinária máquina de propaganda de Putin espalha pelo mundo inteiro: "talvez seja um crime dos ucranianos, só para incriminar os russos". Um terraplanista de Putin, portanto. Mesmo que involuntariamente. 

Sugestão, a quem interessar possa: sendo certo que a primeira vítima de uma guerra é a verdade, se não temos a certeza dos factos em que baseamos as nossas afirmações o melhor é não afirmar nada. Tanto quanto sei, ainda ninguém paga multa por ficar calado nas redes sociais. 


Voltando à questão inicial de José Manuel Pureza, sobre no Tribunal de Nuremberga se mencionar que foram cometidos crimes idênticos dos dois lados: sim, um dos maiores dramas da guerra é criar o cenário no qual pessoas normais cometem crimes monstruosos. Mas, tanto quanto sei (corrijam-me, se estiver errada), até à invasão da Crimeia, em 2014, não se cometiam crimes de guerra em território ucraniano. E a guerra no Donbas, que até agora matou 14.000 pessoas (de ambos os lados, entre militares, paramilitares e civis), foi iniciada por Putin. Até Putin decidir invadir e desestabilizar a Ucrânia, não havia confrontos armados entre ucranianos e separatistas no Donbas, e ninguém cometia crimes contra a humanidade em Bucha.    

Só no princípio deste século é que na Alemanha se começou a falar mais abertamente das vítimas alemãs da guerra. As mulheres violadas, os bombardeamentos das cidades (e em especial o de Dresden), a tragédia dos civis que fugiam ao exército vermelho, e dos alemães expulsos dos antigos territórios do Reich no Leste. Por volta de 2005 uma amiga alemã dizia-me, a esse respeito, que quem começou a guerra não podia vir queixar-se das suas consequências. Era uma questão de decência, dizia ela.

Por essa altura li um artigo num jornal que falava sobre as violações na Alemanha, no fim da guerra. Uma das vítimas perguntou ao irmão dela, quando este regressou da guerra: "o que é que vocês lhes fizeram lá por onde andaram, para eles chegarem à Alemanha com tamanho ódio contra nós?"

Por muito que um tribunal internacional condene - e bem - os crimes cometidos por indivíduos obrigados a ir para o horror da guerra para defender o seu país invadido, a pergunta desta alemã violada por vários soldados soviéticos continua a dar testemunho de um profundo sentido de decência. 

Que é o que - lamento dizê-lo - falta no texto de José Manuel Pureza. 

Se fosse um texto da empresa Venturex & Cª Ldª, não me surpreendia. Sendo de um católico de esquerda que até agora tinha o meu respeito e a minha admiração, dói imenso. 


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