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Trago do facebook um texto fundamental de José Praça sobre o momento histórico que a esquerda está a atravessar. Isto:
"Não contestando a frase batida de a verdade ser a primeira vítima da guerra, a ilusão é seguramente a segunda. Entenda-se aqui ilusão como crença inabalável na superioridade moral da esquerda como forma de ler a vida, o mundo e as pessoas.
Durante muitos anos, habituei-me a passar os olhos pelos comentários nas redes sociais a notícias ou publicações, de gente, real ou inventada, que faziam do ódio o seu escape para as frustrações de uma vida mesquinha e de uma incapacidade paralisante de pensar pela própria cabeça. Contemplar este deserto de ideias e de empatia dava-me uma única consolação, a de que a sua origem era, sem excepções, a da direita profunda, sempre ressabiada com a existência de uma liberdade cuja necessidade nunca entenderam, com os direitos adquiridos de trabalhadores que sempre viram como seus criados e com a igualdade de género ou orientação sexual, que sempre encararam como desvios ou aberrações à, para eles, ordem divina do universo patriarcal e misógino.
A este mundo obscuro contrapunha-se a luz das ideias de esquerda, com diferentes cambiantes, mas coincidindo sempre no essencial da firmeza serena e reflectida na defesa de uma sociedade mais justa. Reforço "reflectida", para vincar que deste lado era o pensamento, melhor ou pior elaborado, que em qualquer polémica comandava as ideias expostas, respeitando o opositor sem recorrer ao insulto soez ou à demagogia do whataboutismo e explicando os seus argumentos a partir de valores culturais e sociais que a própria luta anti-fascista enraizou.
Esta doce ilusão desvaneceu-se com a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin. Aquilo que surge aos olhos de quem vê como a imagem clara de uma agressão violenta e bárbara perpretada por uma potência nuclear dirigida por uma clique de psicopatas sobre um país independente, aparece aos olhos de uma certa "esquerda" e seus afluentes como uma nebulosa de teorias de conspiração, onde cada tímida condenação da "guerra" (raramente da invasão) aparece recheada de adversativas, desviando o foco do agressor para o outro imperialismo, o "seu" imperialismo. Este, o imperialismo americano e a NATO, acabam sempre, por acção ou omissão, por assumir o papel do principal vilão da história, mesmo perante a evidência de não terem tropas no terreno.
Nada demove os saudosos da guerra fria. Conscientes hoje a contra-gosto do ridículo que seria classificar como progressista o regime fascista e cleptocrata de Putin e dos seus oligarcas, adoptam-no ainda assim como digestivo para a azia da ausência prolongada do seu "Sol da Terra" . O ódio aos regimes democráticos levam-nos a mascarar a realidade da guerra, das mortes de civis, dos escombros a que os mísseis russos reduzem hospitais, escolas, teatros, lares de idosos e residências ucranianas com o manto diáfano da "propaganda ocidental", repetindo sem corar as infames insinuações das agências russas de contra-informação e citando ad nauseum as falácias anti-nazis de Putin na impossivel defesa da agressão à Ucrânia.
Tudo isto já seria grave o suficiente se não fosse materializado em discussões nas redes sociais e nalguns meios de comunicação num estilo de argumentação que cada vez mais repete sem vergonha a táctica do insulto, da insinuação de conivência do interlocutor com o imperialismo e do whataboutismo descarado. Abundam as expressões de ódio e desprezo pelo opositor na polémica, mimetizando na forma e no conteúdo o vazio argumentativo da ralé do Chega. Acossados pela indignação generalizada com o seu colaboracionismo com o invasor, usam como pretexto as habituais grosserias anti-comunistas da direita para tentar identificar todo o apoio ao país invadido com a submissão aos interesses da NATO e dos Estados-Unidos, manipulando frases, números e mapas para a construção da sua realidade alternativa, inspirada nos trolls de serviço na RT ou na Sputnik.
Mesmo as poucas tentativas de pensamento mais elaborado pelos defensores-de-Putin-que_não-defendem-Putin vêm quase sempre acompanhadas de um desdenhoso sentimento de superioridade de quem acha ter a "perspectiva geral", insinuando que os defensores do lado ucraniano se esquecem das invasões e agressões levadas a cabo pelos EUA e pela NATO. Confesso que é esta arrogância argumentativa da parte de quem sempre defendeu as "suas" invasões e que do alto da sua cátedra nunca tem uma palavra sobre o sofrimento do povo ucraniano que me tira mais do sério. Acompanhando a indignação de Greta Thunberg, pergunto: "How dare you?". Como se atrevem a atirar-nos à cara com a agressão à Sérvia, a invasão do Iraque ou a opressão israelita sobre os palestinianos, como se alguma vez tivéssemos deixado de denunciar e combater essas iniquidades?
O que nos separa é ter ou não a decência elementar de reconhecer que os vilões, os genocidas e os autocratas têm várias cores e diversas motivações e que todos eles, sem excepção, merecem o repúdio generalizado dos democratas. O que nos separa é reconhecer que a Ucrânia não é o paraíso na Terra, tem nazis, oligarcas e corruptos, mas tem direito à sua identidade, à sua existência como país soberano e à confiança das outras nações na sua capacidade de resolver os seus próprios problemas internos. O que nos separa é estar ao lado da vítima e não do agressor. O que nos separa é a tolerância com a diferença de opiniões, a rejeição do bullying, da arrogância e da demagogia. O que nos separa é a linha vermelha do pensamento democrático, cuja fronteira transpuseram sem remorsos e sem vergonha. O que nos separa é Grozny, Aleppo ou Mariupol para quem insinua que só há Belgrado, Gaza ou Bagdad. O que nos separa, vendo bem, é tudo.
Parabéns Putin, depois de todos os teus esforços em prol da extrema-direita mundial, acabas de conseguir uma vitória imprevista: o fim das ilusões na esquerda como referência moral. Talvez seja a hora de deixar de chamar de "esquerda" a gente dessa para que a ilusão reviva, nem que seja numa pequena luz bruxuleante no horizonte."
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Acrescento alguns comentários:
- Há pessoas de direita, como por exemplo o Pedro Mexia, cujo discurso nos convida também a distanciar-nos dessa ideia de superioridade moral da esquerda.
- O verdadeiro inimigo não é a direita, ou a esquerda, mas os que, de um lado e do outro, não se orientam por princípios básicos que deviam ser comuns a todos.
- Pelo que esta crise na esquerda é muito benéfica: permite separar o trigo do joio, ver quem aderiu aos valores democráticos e quem perdeu esse comboio, e continuar caminho com os democratas. Se tudo correr bem, os outros - à esquerda e à direita - estão condenados a ser uma periferia cada vez menos significativa na paisagem dos países que se esforçam para viver em Democracia.
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