05 março 2022

...e se fosse a Leni Riefenstahl?


Depois de escrever o post anterior, "o regresso do McCarthysmo?", li alguns artigos em alemão sobre o caso Gergiev. Há quem critique o seu afastamento do mundo cultural alemão, e há quem o defenda. Partilho agora uma dessas defesas, um artigo de opinião de Friedrich Geiger no Spiegel (aqui, artigo pago). Friedrich Geiger é professor de História da Ciência Musical, e especialista do tema "Música e Ditaduras"


O sonho da música apolítica

"Será correcto cancelar agora em grande escala artistas próximos de Putin? Não necessariamente. Mas no caso Waleri Gergiev é muito claro: uma Democracia tem de se proteger quando alguém abusa deliberadamente da música para fins de propaganda."

Síntese:

O caso Fürtwangler já nos ensinou que é ingénuo pensar que é possível fazer música de forma apolítica num contexto de ditadura - quando, por exemplo, tocou uma abertura de Wagner numa sala cheia de bandeiras nazis.

E a função do maestro Gergiev no sistema Putin tem muitos paralelos com a Fürtwangler no sistema nazi - embora, obviamente, a Rússia de Putin não seja de modo algum comparável à Alemanha de Hitler.

Ao contrário de Fürtwangler, que fez algumas tentativas para se demarcar dos nazis (por exemplo, defendeu o compositor Paul Hindemith), Gergiev tem vindo a encenar com música uma ideologia agressiva da Grande Rússia, que proclama abertamente a sua supremacia na Europa, além de declarar abertamente o seu apoio a Putin.

O objectivo da "Valery Gergiev Foundation" é "aumentar a influência cultural da Rússia no mundo".

Exemplo da articulação perfeita entre a política de Putin e a propaganda cultural imperialista de Gergiev foi o "Concerto dos Vencedores", no verão de 2008 numa região ocupada da Geórgia. Tocou a Sinfonia de Leninegrado, composta por Schostakowitsch em 1941 durante o cerco a Leninegrado como apelo à resistência contra as tropas nazis. Na Geórgia, a escolha desta peça sugeria uma leitura oposta aos factos, a mesma que Putin hoje dá à invasão da Ucrânia (para alegadamente a libertar dos nazis que a ocupam), e foi antecedida por um cínico discurso de Gergiev, no qual ele dedicava o concerto às vítimas dos georgianos (!).

Também participou numa carta aberta, em Março de 2014, que aplaudia não apenas a anexação da Crimeia mas também a "atitude do presidente da Federação Russa em relação à Ucrânia".

Isso já seria motivo de sobra para não poder tornar-se Maestro da Orquestra Filarmónica de Munique. E foi um erro ter-lhe renovado o contrato.

Mas é preciso aprender com os erros, em vez de persistir neles.

Manter Gergiev à frente daquela orquestra era usar impostos dos contribuintes alemães para financiar a propaganda de Putin no estrangeiro, e simultaneamente continuar a sonhar o sonho da música apolítica que, como se viu com Fürtwangler e outros, teve aquele desfecho.

Imagine-se a orquestra de Munique - cidade geminada com Kyiv - a tocar a Sinfonia de Leninegrado no próximo dia 12 de Maio, como estava planeado. Georgia reloaded. Quem conseguiria e quereria ouvir esse concerto de consciência tranquila?

A questão de Gergiev não se põe ao nível da liberdade de expressão. E é preciso ter cuidado para não cancelar todo e qualquer artista russo. Tanto mais que é temos de olhar para o que significa, para os artistas que vivem sob uma ditadura, serem forçados a distanciarem-se dela. E perguntar-nos também se isso faz sentido, ou se se destina apenas a alimentar a nossa boa consciência.

Mas o caso Gergiev é muito diferente, porque este maestro abusa da música para fins de propaganda, e fá-lo não por obrigação mas por convicção ao serviço de uma loucura ideológica, profundamente desumana, que ameaça a existência do mundo livre. Ele trabalha para um déspota que se está nas tintas para a liberdade de expressão e para a população ucraniana que bombardeia neste momento.

Como disse Popper, que o aprendeu em 1945 a partir da História, "tolerância ilimitada conduz necessariamente ao fim da tolerância". Isto também é válido para artistas, e por isso a Democracia deve defender-se deles, em vez de lhes pagar ainda por cima.


4 comentários:

Unknown disse...

obrigada Helena por nos ajudar a pensar sobre estas questões sempre mais complexas que os nossos sentimentos.
Mónica Granja

josépacheco disse...

Julgo que a qualidade e o valor da obra devem ser tomados como independentes dos actos sociais dos seus criadores, e que seria uma perda para todos nós, mais ainda do que um castigo para os criadores, privarmo-nos do que eles fizeram de melhor. Quando, porém, a obra tem um significado ético ou político directo, quando vale como uma forma de propaganda e se torna um instrumento com consequências num contexto particular, deverá ser condicionada. É diferente de obrigar, por exemplo, todos os artistas russos a terem de tomar posição; e reconheço que seja arriscado, porque os nossos critérios para distinguir onde acaba a arte e começa a propaganda podem facilmente ser injustos. Pior: quem me garante que, ao cancelar alguém (a própriapalavra me arrepia), em nome do que me parece correcto, não estou a impedir-me de pensar, para além do maniqueísmo, a posição do outro? Mas é, porventura, o risco a correr.

josépacheco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Helena Araújo disse...

Tenho muito mais perguntas e inquietações do que respostas.