A Orquestra Filarmónica de Munique rescindiu com efeitos imediatos o contrato com o seu maestro Gergiev, por estar demasiado próximo de Putin, e não ter tomado uma atitude pública de condenação da invasão da Ucrânia. A Anna Netrebko também foi forçada a fazer uma declaração - e fez, depois de alguma hesitação, mas protestou contra a pressão que estão a exercer sobre os artistas russos. Pouco depois, cancelou todos os seus concertos.
Petrenko, o maestro dos Filarmónicos de Berlim, tomou imediatamente uma posição pública contra a invasão. Mas para ele não deve ser uma decisão particularmente difícil e delicada, porque já há muito tempo que a Europa ocidental é a sua casa.
Confesso que estes cancelamentos me incomodam imenso.
- Primeiro, o eco da era McCarthy: vamos exigir declarações de todos os criadores de cultura russos, vamos passar a vida deles a pente fino? Vamos obrigá-los a escolher um dos lados da cerca que não construíram e em muitos casos nem sequer desejaram?
(Transponho para a realidade do Portugal salazarista: como seria um escritor, um músico ou um pintor português ser obrigado em todo o Ocidente a tomar uma posição pública contra Salazar, sem a qual não poderia trabalhar fora do seu país?)
- Segundo, a hipocrisia: quando a Orquestra Filarmónica de Munique contratou Gergiev, já este tinha publicado uma carta de apoio à invasão da Crimeia. Só agora descobriram que ele tinha uma posição política contrária aos nossos valores?
De notar que, desta vez, ele não tomou uma posição pública de apoio à invasão. Limitou-se a ficar calado - e isso já foi motivo para despedimento.
Este gesto de encurralar alguém que preferia manter-se em silêncio é-me especialmente custoso. Compreenderia, se se tratasse de um general ou um ministro de Putin - mas é apenas um maestro.
- Terceiro, a crueldade: para muitos destes artistas, o centro da sua vida é a Rússia. Um país sufocado por um ditador que aprendeu tudo no KGB. Exigir deles um distanciamento público de Putin equivale a obrigá-los a decidir entre continuar a viver e trabalhar na Rússia, ou nunca mais lá voltar. Não é uma hipótese teórica, já acontece. O escritor Wladimir Kaminer, por exemplo, não pode regressar a Moscovo, onde nasceu, devido às posições públicas que tem tomado contra Putin. Quer dizer: poder, pode... Como ele próprio disse há tempos numa entrevista, "a Sibéria é grande, há espaço para todos".
- Quarto, o empobrecimento cultural que resulta das exigências fanáticas que impomos aos famosos. Os criadores de cultura não são seres perfeitos. Têm os seus contextos e as suas contradições como qualquer um de nós.
Quando cancelarmos Wagner por ser anti-semita, e Picasso por ser machista, e Polanski por ser pedófilo, e Meryl Streep por ter aplaudido Polanski, e Cristiano Ronaldo por causa daquilo em Las Vegas, e Netrebko por não se distanciar de Putin, o que nos vai restar? Provavelmente pouco mais que os youtubes de crianças de 3 anos a cantar, pintar, tocar instrumentos e dançar. E é enquanto não aparecer nenhum filme onde elas dão um empurrão a outra criança no escorrega.
ADENDA: Escusado será dizer que eu vaiaria aos gritos e abandonaria a sala de concertos onde Gergiev afirmasse que acha muito bem o que Putin está a fazer na Ucrânia, e a sala de cinema onde Polanski aparecesse a dizer que não vê nada de mal em ter sexo com menores, etc.
9 comentários:
Estou para aqui, com a caixa de comentários aberta, a pensar se hei-de, ou não, de o publicar com o conselho de se rever o filme Les uns et les autres, de Cloude Lelouch.
No fim veremos se me decido a clicar no botão "publicar o seu comentário" ou abandoná-lo sem o publicar.
Seja como for, se hoje fosse a um concerto dirigido por Gergiev, nunca deixaria de me vestir com um casaco azul celeste e uma camisa amarela.
Curioso, também me lembrei dessa cena.
E ninguém me obriga a ir ver concertos dele, ninguém me impede a ir vê-los vestida de azul e amarelo.
Outra coisa é exigirmos do Gergiev que escolha de um momento para outro entre continuar a sua carreira de artista na Rússia (está à frente do teatro Mariinski em São Petersburgo) ou na Europa ocidental. E repito: ele não é nem ministro nem general de Putin. Embora seja "amigo".
(Por acaso, agora ocorreu-me que o último concerto da temporada dos filarmónicos de Berlim no anfiteatro da floresta é com o Petrenko e o Trifonov. Boa ideia, irmos todos de azul e amarelo. Nem é para os atacar a eles, é para dizermos por quem somos. O Petrenko também já o disse. O Trifonov não sei - e não sei que liberdade terá para o dizer.)
Falar em regresso do macartismo será um pouco exagerado, mas concordo que é excessivo obrigar pessoas alheias a esta monstruosidade que o novo Hitler está a causar a declararem as suas opiniões pessoais, sobre seja lá o que for, e que as mesmas sejam depois motivo de descriminação.
Recordemos, a propósito, os conhecidos casos de Fürtwängler, ou Primo Levi...
Para além do mais, é sempre um sinal claro de fraqueza: será que temos medo de que as opiniões singelas de um Maestro, ou de um Músico, vão abalar as nossas sólidas consciências? Que força têm então as nossas convicções?!
Por outro lado, revela um sinal de força enganador, porque falso, pensarmos que rejeitando um contrato com um profissional competente (Artista, ou qualquer outro) apenas por discordarmos das suas opiniões estaremos a "combater" o mal, ou a "auxiliar" que precisa mesmo (e muito) de ajuda neste momento...
Olha se o Benfica tivesse exigido uma declaração ao Jorge Jesus de que já não era sportinguista, ou o City tivesse feito o mesmo com o Bernardo Silva, ou o Real Madrid com o Ronaldo (que até chorou em Alvalade, quando lá marcou um golo ao Sporting...), ou o Joachim Löw ao Özil, etc., etc., etc.?
Serenidade precisa-se, nestes tempos inesperados de regresso oficial da loucura à Europa.
Soprano Anna Netrebko withdraws from Met performances rather than renounce Putin
https://www.theguardian.com/world/2022/mar/03/soprano-anna-netrebko-withdraws-from-met-performances-rather-than-renounce-putin
Joaquim, obrigada pelo link.
Entretanto andei a ler um pouco mais sobre esses dois artistas, o Gergiev e a Netrebko (v. artigo do comentário anterior, por exemplo)
Lá vou ter de escrever mais um post...
Conde Oeiras e Marquês de Pombal,
estive a informar-me um pouco mais. O caso é ainda mais complicado. O Gergiev põe a sua arte ao serviço da propaganda do Putin.
Sendo assim, já compreendo melhor que corram com ele.
Outra coisa seria estar caladinho para não atrair a ira do Putin sobre ele.
Ser-se antisemita ou machista corresponde a uma posição atitudinal em sistemas preconceituosos contra grupos sociais, pode levar à ação criminal ou não. Manter uma relação sexual com uma menor ou contra a vontade de uma mulher adulta é cometer um crime, perante a lei em vigor no país em questão. Acredito na inserção social de pessoas que cometem crimes, mas não posso negar os seus atos, por respeito às vítimas desses crimes e à prevenção da criminalidade geral, segundo os códigos penais.
Cláudia, ninguém espera de si que negue os actos das pessoas.
Mas esses crimes devem ser julgados por tribunais e penalizados segundo o estabelecido código penal. O qual não prevê que, se o culpado for pintor, se retirem os seus quadros de todas as paredes do mundo. Por exemplo.
Enviar um comentário