11 março 2022

berlinenses que acolhem refugiados ucranianos - um testemunho

 


Às vezes precisamos que alguém nos empurre. Foi o que aconteceu comigo no sábado passado. Quando recebi o telefonema da minha amiga J. que estava na estação central de comboios, aqui em Berlim, e precisava de arranjar casas onde alojar pessoas acabadas de chegar da Ucrânia. Escrevi uma mensagem a pedir ajuda a todos os moradores da minha rua, ao meu grupo de famílias católicas, ao meu coro e ao grupo de facebook "portugueses e portuguesas em Berlim". Em breve tinha duas famílias a oferecer lugar para seis pessoas no total (e nem às paredes confesso qual foi o grupo que não me deu uma única resposta, mas espero sinceramente que seja por estarem todos muito ocupados nas respectivas paróquias a cuidar de centenas de casos desesperados). Também recebi resposta de amigos e vizinhos que estão de férias, e me vão contactar depois de regressarem. Ao longo da semana, mais mensagens foram chegando - e a generosidade das pessoas não pára de me surpreender. Algumas disseram-me que já se tinham registado como famílias de acolhimento em várias plataformas, e estavam à espera de um contacto que não vinha. Noutras mensagens desabafavam comigo sobre a impotência que sentiam perante o cenário de desespero na estação de comboios.

Enquanto eu esperava respostas, a J. - que tem uma profissão extremamente exigente, faz trabalho voluntário para ajudar refugiados no tempo que devia usar para dormir, e já está com umas olheiras como nunca lhe vi - deixou o seu posto na estação de comboios. Acabei por ficar com ofertas de famílias de acolhimento para seis pessoas, e ninguém a quem as dar.

Encontrei a J. no domingo, tínhamos combinado ir à ópera. Ela, que passara seis horas na estação ao lado de inúmeros berlinenses que queriam ajudar, falou-me em "charity tinder" e em "cherry picking" e em personagens com ar estranho que também se estavam a oferecer para levar ucranianas para casa (sim, a criminalidade chegou depressa à estação central de comboios de Berlim). Contou, com tristeza, que alguns dos refugiados ainda têm mais azar que os outros. A aparência conta, a cor da pele conta, o sexo conta. Mulheres que se lembram de compor a maquilhagem antes de sair do comboio recebem logo ajuda, homens de pele escura ficam para trás. A J. perguntava-se também - pergunta meramente retórica, claro - por que motivo desta vez não havia grupos de alemães a tentar boicotar o trabalho dos voluntários, como em 2015. Nesse verão, muitos vieram à estação manifestar-se e gritar "boas pessoas!" como insulto e intimidação contra aqueles que queriam ajudar refugiados.

Depois da ópera, regressei a casa de transportes públicos, com passagem pela estação central. Precisava de ir à casa de banho. Vi que tinham desligado o sistema de pagamento e posto um cartão onde alguém escrevera à mão "WC free" (o que, sendo uma ninharia, me comoveu), e encontrei-a muito limpa e cheia de mulheres e crianças com ar exausto. Quase ninguém tinha máscara, o que me deixou inquieta por eles: na situação em que se encontram, não precisam mesmo nada de a complicar ainda mais adoecendo de covid. Num impulso, dei a duas miúdas sentadas no chão os chocolates de luxo que trouxera da bandeja à saída da Komische Oper. Um sorriso leve apareceu nos seus olhos pasmados, eu engasguei-me toda sem saber o que dizer nem em que língua, e virei a cara rapidamente para não me verem chorar.

Na segunda-feira, as seis camas que me tinham confiado continuavam disponíveis. Tinha mesmo de tratar disso, porque aparentemente o sistema de inscrição nas plataformas de apoio não estava a ter os resultados necessários. Ao fim do dia telefonei a uma amiga que fala russo, e ela veio ter comigo à estação, trazendo também o marido para ajudar. Achou que eu ia entregar literalmente seis camas na estação, e pensou que talvez desse jeito ter mais um par de braços. Ali estavam os dois, a Paula e o Diego, e sorríamos como se fosse apenas um encontro de amigos ao fim de um dia de trabalho. Mas isso foi apenas até ao momento em que descemos as escadas em direcção à zona da estação onde inúmeros voluntários improvisaram um centro de acolhimento. Criaram várias zonas numa sala descomunal e fria: de um lado, distribuição de comida, bebidas, brinquedos, roupas e cobertores; do outro, pessoas a oferecer lugar na sua casa; a um canto, condutores que vão levar as pessoas às casas de acolhimento; uma espécie de stand de informações no meio; e por todos os lados pessoas a fugir a uma guerra que destrói vidas a pouco mais de mil quilómetros daqui, à espera de um abrigo para passarem alguns dias.

No princípio, quando Berlim se apercebeu que estavam a chegar muitos milhares de pessoas vindas da Ucrânia, e ninguém sabia o que fazer, a sociedade civil antecipou-se ao Estado. O que acontece naquela estação é muito fruto do esforço de centenas de berlinenses que ali acorrem para trabalhar durante horas e desoras, unidos pela generosidade, tentando cada um fazer o que pode. O resultado é surpreendentemente positivo. A cada comboio que chega aquela sala enche, e depois vai-se esvaziando porque, a pouco e pouco, conseguem arranjar soluções provisórias para quase todos.

No centro da sala havia um grupo de pessoas envergando coletes amarelos onde se lia, escrito sobre fitas adesivas, as as línguas que falavam. No meio delas, uma mulher jovem com um megafone fazia a intervalos regulares apelos do género: "duas pessoas, uma noite" ou "quatro pessoas, até quinta-feira". Alguém do grupo dos que ofereciam espaço na sua casa chegava-se à frente. Um problema resolvido, venha o próximo.

Fomos ter com ela, e dissemos o que tínhamos para oferecer. Ficou muito aliviada por falarmos russo, e mandou-nos para o lugar onde uma mulher, sentada no chão e de costas contra a parede, estava a sofrer um ataque de pânico. Ao seu lado, de pé, o filho de 16 anos olhava com um ar embaraçado e ausente.

E foi então que aconteceu um daqueles momentos redentores e únicos que nunca mais se esquecem: a Paula acocorou-se à frente daquela mulher, agarrou-lhe as mãos com carinho e firmeza, e começou a falar-lhe em russo, tentando chegar ao lugar distante, do lado de lá de tudo, onde ela tinha caído. A pouco e pouco o seu olhar acossado foi-se detendo no da Paula, e começou a fazer caminho até nós. Era impensável levá-la naquele estado para a casa de outras pessoas que não falavam russo. Pelo que pedi à Paula e ao Diego se os podiam deixar dormir na casa deles até ela ganhar a segurança suficiente para ir para outra família. É complicado, porque eles próprios estão à espera de amigos que hão-de chegar em breve, vindos de Kyiv, mas aceitaram. Quando ela se levantou, e juntamente com o filho agarrou nas poucas bagagens para sair com a Paula, as duas jovens voluntárias que tinham estado o tempo todo com os dois abraçaram-se longamente e respiraram muito fundo. Só então me dei conta de que aquelas duas miúdas tinham estado a carregar um peso muito maior do que as suas forças.

Telefonei à minha amiga que oferecia duas camas ("as camas já estão feitas, venham quando quiserem", escrevera ela), perguntei se podia receber os dois, e ela respondeu que não, porque o seu filho adolescente tem autismo e seria um problema ter outro rapaz em casa. Só podia receber duas mulheres. Telefonei à minha amiga que tinha esvaziado o escritório onde funciona a sua pequena empresa, para dar lugar a quatro pessoas, e ela achou péssima ideia gastar apenas com dois o espaço onde cabiam quatro. Além disso, tinha a casa cheia de brinquedos da filha, preferia acolher alguém com crianças.

De modo que eu ainda tinha seis camas disponíveis, e já me sobravam duas pessoas. Um problema que teria de resolver no dia seguinte.

A voluntária do megafone continuava a fazer os seus anúncios. Um dos seus ajudantes - e como era extraordinário o ar calmo com que todos trabalhavam ali! - disse-nos que talvez pudéssemos ajudar duas mulheres acabadas de chegar. Fomos ter com elas, o Diego falou-lhes em russo. Explicou que iam para a casa de uma família onde havia um miúdo com autismo, e uma delas respondeu que em tempos trabalhara na Itália, a cuidar de uma velhinha que também tinha autismo. Depois também disse que lia a Bíblia, e a trouxera consigo. Eu olhei para a sua mala minúscula ("que levarias na tua mala se tivesses apenas dez minutos para abandonar a tua casa e tivesses de competir com milhares de outros para conseguir um lugar num transporte?") e o Diego respondeu-lhe que em Berlim isso não é tão importante, e que todos recebem ajuda, independentemente da religião. Para a sossegar, mostrei fotos da minha amiga e dos filhos. Enquanto falava com elas, vi pelo canto do olho a família perfeita para o escritório esvaziado, e tive vontade de interromper a conversa com aquelas duas para ir "caçar" os outros quatro - mas tive o distanciamento suficiente para me rir de mim própria ao descobrir que acabara de cair na armadilha do "charity tinder". Acabei calmamente a conversa com aquelas duas mulheres, dei o endereço ao Diego, disse-lhe que a minha amiga é professora de espanhol, pelo que ele poderia conversar com ela na sua língua materna e com as ucranianas em russo. Num impulso, a da Bíblia deu-me um abraço apertado, que me soube pela vida. E lá foram eles.

Estava agora sozinha, e ainda tinha quatro camas para oferecer. Perto de mim, uma miúda saltitava com um balão amarelo na mão. Ao seu lado, estava a mãe, jovem e muito bem vestida, junto a malas bem maiores do que todas as outras que eu vira nesse dia. Achei que já tinham o problema resolvido, porque o binómio "mãe e filha" era o mais disputado naquela estação. Mas não. Também tinham os avós, o que tornava o caso mais difícil para as outras famílias de acolhimento, e fazia deles o grupo ideal para o espaço que eu podia oferecer. Melhor ainda: a mãe falava um inglês perfeito. Telefonei à minha amiga, que aceitou imediatamente e se ofereceu para pagar os trinta euros do táxi. Mas nem isso foi preciso, porque daí a pouco apareceu um dos condutores voluntários que os levaria ao seu destino provisório. Vinham de Kyiv, tinham demorado quatro dias para chegar à fronteira. Tranquilizei-os falando-lhes sobre a minha amiga, que é muito simpática e mora numa casa linda com jardim, numa rua sossegada. A jovem mãe perguntou-me se conheceria alguma família interessada numa nanny a falar inglês, porque ela precisa urgentemente de arranjar um trabalho e isso lhe parecia a solução possível neste momento. Acabada de chegar de uma viagem extenuante e assustadora que demorara cinco dias, ainda sem ter sequer visto o sítio onde ia ficar alojada, e já me falava em encontrar trabalho!

Despedi-me deles. Subitamente, a miúda deixara de brincar e a mãe parecia muito cansada. Até o sorriso caloroso dos avós perdera o brilho. Como se tivessem reunido as últimas migalhas de alegria para chegar ao fim do túnel, e tivessem deixado de precisar dela no momento em que viram a condutora que os levaria, finalmente, a uma casa segura onde podem ficar pelo menos um mês.

Vim para casa sentindo-me eufórica. Em menos de duas horas conseguíramos tirar oito pessoas daquela estação. Mas a euforia passou-me depressa, porque o mais trabalhoso está para vir. A J. contou-me que alguns dos seus amigos que acolheram refugiados começam a sentir-se ultrapassados pela situação, porque não sabem o que fazer com aquelas pessoas apáticas e mudas, estacionadas na sua casa, cuja língua nem sequer falam.

Fiquei preocupada. Elementar, mas só agora me ocorria: não basta ir buscar as pessoas à estação. Três amigas minhas têm agora na sua sala e na sua cozinha pessoas que acabaram de deixar para trás tudo - familiares, amigos, a sua vida e os seus haveres -, estão seguramente a passar o pior momento da sua vida, e não sabem o que as espera. Falei com todas.

A Paula contou-me que o miúdo é muito calado, e a mãe tem falado imenso. Precisa de deitar para fora todos os horrores e os medos. A Paula ouve, ouve, ouve. Eles quase não comem - em parte por estarem traumatizados, em parte porque sentem vergonha de estarem a dar despesa.

A professora de espanhol contou-me que as duas amigas são impecáveis. Na segunda-feira ficaram ainda a conversar até tarde (não sei em que língua) e no dia seguinte fizeram questão de cozinhar o almoço. A pedido delas, arranjou-lhe calmantes leves e testes de covid. Já tinha organizado um encontro com uma tradutora para combinarem o que fazer nos dias seguintes e resolverem as questões burocráticas. Estas vão-se atrasar bastante, porque ainda ninguém sabe o que é preciso fazer com estes refugiados, nem sequer onde se devem inscrever. A máquina estatal funciona com os seus ritmos mais lentos.

A que acolheu a família de quatro telefonou no dia seguinte de manhã. Parecia feliz. Queria agradecer-me por ter escolhido pessoas tão simpáticas para a casa dela, tinha a sensação que se iam dar muito bem. Senti-me contente e aliviada, e pensei com uma ponta de sarcasmo contra mim própria: "You got a match!" Sim, eu sei: "charity tinder". Mas é complicado andar a enviar desconhecidos para casa das minhas amigas. Se alguma coisa corre mal, sinto-me de certo modo responsável. E não é fácil, nada fácil, partilhar o espaço da casa com pessoas que estão a viver um drama terrível.

Dias depois, num grupo de vizinhos do meu bairro apareceu uma psicóloga a oferecer apoio gratuitamente a quem estiver a sentir-se ansioso devido a esta guerra. Em alemão e inglês. Pensei na jovem mãe e no seu inglês impecável, repassei a mensagem. A resposta veio prontamente: "We feel good now,we understand that we are in safe place,so everything is OK. Thanks 🙏 "











3 comentários:

méri disse...

comovente! Um apertado xi-coração

RubenBianchi disse...

Há uns dias, estava pensando em perguntar como vão as coisas aí em Berlim. Tinha certeza de que você não estaria esperando as coisas acontecerem. Vejo que você tem ajudado essa gente que, como vítimas de muitas outras guerras, não têm culpa pelas mazelas que o ser humano é capaz de criar.
oOo
Pensei em ir para a Europa e me voluntariar para dirigir ônibus. Sou habilitado para tanto. Ou então para trabalhar como enfermeiro - não terminei o curso de medicina - no porão de algum hospital. Os trabalhos mais perigosos devem ser, afinal, feitos por quem já viveu muito.
oOo
O correto, no entanto, e olhar ao redor e se perguntar o que pode ser feito no aqui e agora. Como você tem feito.
oOo
Saio todo dia com o meu cachorro. Ele tem uma artrose, ou alguma coisa não muito bem diagnosticada. Ele precisa dessa fisioterapia. Quase sempre passo pela praia. Tanta gente tomando sol, jogando frescobol de biquíni, tirando fotos do pôr-do-sol, num lugar raro no Brasil, em que o dia termina com uma bola de fogo entrando no mar. Fico imaginando se as pessoas fazem ideia da guerra, do sofrimento, das mortes, da destruição de um país.
oOo
Temos nossa guerra particular. O Rio é tomado por milícias. Nas áreas controladas por eles, o estado não entra. Não há polícia, hospitais, escolas, ninguém paga imposto, a não ser para as milícias. Toda semana morre alguém por bala perdida.
oOo
Como dar conta de tanta violência? Assisti Bombardiment, um filme sobre uma escola que foi atingida por engano no finalzinho da segunda guerra. Uma personagem, Irmã Tereza, questionava a existência de Deus. A história é verdadeira, a personagem fictícia. Irmã Tereza, Rigmor, e outros seres humanos tão lindos...

Helena Araújo disse...

Ruben,
eu não olho em redor. As coisas vêm ter comigo...

Vives numa espécie de paraíso - o paraíso possível, pelo menos.
Deixar-se acabrunhar e paralisar pelo que se passa noutro lado não ajuda ninguém. O mundo precisa de uma reserva de alegria para oferecer aos outros.

Um beijo.