20 novembro 2021

um Corão na minha casa

 


Ao arrumar o apartamento airbnb descobri entre os livros de decoração que por lá há uma edição de luxo a explicar o Corão. 

Então que é isto? Terá sido esquecimento, ou intencional?

Inclinei-me para intencional - ninguém mistura os seus próprios livros aos que estão pousados nos móveis a fazer de conta que é shabby chic - e senti-me invadida. Depois comecei a pensar quem terá sido - o egípcio que até trouxe um tapete para rezar? Era muito simpático e delicado, mas se calhar é assim que uma pessoa se engana... Ou terá sido um dos jovens que trabalhou numa start up e tinha um nome "estrangeiro"? Também era muito educado e simpático, mas...

Estava nesta dinâmica de largar os meus preconceitos todos contra algumas das pessoas que por cá passaram nos últimos tempos, e de repente lembrei-me que tenho nesse apartamento alguns livros infantis de que os meus filhos não gostaram muito, e não conseguimos vender numa das nossas garage sale (vá-se lá saber porquê...). Como não tenho onde pôr, deixei ficar por lá. Se alguém roubar, não me incomoda: assim como assim, são livros que não queremos. Entre eles, há vários de temas religiosos. O abecedário da Bíblia em inglês, objectos e histórias da Bíblia, coisas assim. 

E foi então que me caiu a ficha: para um muçulmano fervoroso, pode ser um pouco desconfortável dormir num quarto onde há uma série de lombadas a dizer Bíblia isto e Bíblia aquilo. Bem sei que é a minha casa, mas pode ser sentido como provocação, ou pelo menos vontade de missionar. 

Continua a parecer-me errado terem deixado aqui um Corão. Tanto mais que sinto um certo prurido em espetar com ele no contentor do papel. Mas esse gesto de alguém que por aqui passou, e era simpático e educado, permitiu-me sair da própria pele, e perceber como outros se podem sentir na minha casa. 


10 comentários:

jj.amarante disse...

Na mesa de cabeceira do hotel em que fiquei em Chennai, além da Bíblia tinha o Bhagavad-gita, conforme refiro neste post: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2012/03/fora-da-europa.html.
Mas trata-se de uma situação diferente, para propor livros de 4 ou 5 religiões num Alojamento Local o anfitrião deveria assegurar-se da qualidade de cada um deles o que me parece impraticável. Pode criar uma secção de livros esquecidos pelos hóspedes. Ou obviamente dar-lhe o destino que lhe parecer mais apropriado.

Lucy disse...

Acho que até foi um gesto simpático. Para ele era uma coisa importante e se calhar achou que tu não conhecias e quis partilhar. Podia ser que fosse uma descoberta fantástica para ti. Não pode ser?

Manuel Galvão disse...

Se fosse eu a viver essa "aventura" aproveitava para ler o livrinho... nem que fosse na diagonal.

Luís Lavoura disse...

uma edição de luxo a explicar o Corão

Uma edição de luxo de um autor de luxo: Hassan al Banna foi o fundador da Irmandade Muçulmana.

Helena Araújo disse...

Eu não proponho livros, jj amarante. O meu é um verdadeiro alojamento local: um espaço familiar cheio de objectos pessoais. Tenho lá livros meus que não cabem no resto da casa, móveis antigos de família, coisas assim.
São os quartos dos meus filhos, que, na ausência deles, podem ser usados por outras pessoas.

Helena Araújo disse...

Lucy, senti o gesto dele como invasivo. Nunca me ocorreria deixar uma bíblia, ou uma explicação da bíblia, numa casa de muçulmanos onde me tivesse hospedado. Outra coisa seria conversarmos e, se visse interesse da parte deles, oferecer-lhes um livro sobre o assunto.

Helena Araújo disse...

Manuel Galvão,
na diagonal é mesmo a pior maneira de ler um livro destes. Nem sequer começo. Bem sei, pela bíblia, a bagagem intelectual que é preciso ter para entender o que foi escrito há tantos séculos.

Helena Araújo disse...

Luís Lavoura, já percebi. Um dia destes ainda vou presa. Mesmo sem ter lido o livrinho.

Jaime Santos disse...

Os Gideons não deixam Bíblias em quartos de hotel? É capaz de haver um movimento de muçulmanos semelhante, não sei... Talvez a pessoa em questão possa ter achado que o Corão ficaria bem junto com os outros livros religiosos... Mais do que uma provocação ou invasão, pode simplesmente ter-se tratado de alguém que considerou que o Corão merece ser colocado ao lado da Bíblia (e merece)...

Helena Araújo disse...

Jaime Santos, não foi bem assim. Não tenho nenhuma Bíblia naqueles quartos. Tenho livros infantis - alguns relativos à Bíblia - arrumados em cima de um roupeiro.
E ele deixou um texto de explicação sobre o Corão, escrito pelo fundador da Irmandade Muçulmana, numa mesinha de cabeceira.