03 setembro 2021

lamentável (1)

Este assunto já quase passou à história das redes sociais, mas é um exemplo importante de algo que está a acontecer na nossa Democracia e que temos de evitar a todo o custo.

Refiro-me, em primeiro lugar, ao "momento zen" em que o Francisco Louçã ridicularizou Aline Gallasch-Hall de Beuvink, deputada da Assembleia Municipal de Lisboa pelo PPM, dizendo que finalmente encontrou alguém que acredita que "os comunistas comiam criancinhas" (aqui). O problema é que a Aline Hall de Beuvink não afirmou isso. Pelo contrário: deixou bem claro que se tratava de "um mito, embora com algum fundo de verdade", que nasceu na altura do Holodomor, quando na Ucrânia houve casos de canibalismo devido ao desespero da fome como consequência das políticas estalinistas. 

O que terá passado pela cabeça do Francisco Louçã para pôr na boca da Aline Beuvink justamente o contrário daquilo que ela disse?

Se fosse apenas um tiro que lhe saía pela culatra, como saiu, não me importava muito. Mas comportamentos destes inquinam o ambiente de debate e abalam o sistema democrático que precisa do esforço conjunto de todos nós para se tornar mais estável.
Ou seja: esta manipulação foi também um ataque à nossa Democracia. E não pode ser. 

Em segundo lugar, o discurso que esteve na base daquela manipulação também não é propriamente um ponto alto do debate democrático - como se pode ver aqui: 



Repare-se desde logo (0:27) no ar entediado de Aline Beuvink a dizer "o massacre dos palestinianos pela autoridade israelita", "o massacre da faixa de Gaza", "políticas migratórias norte-americanas"...
A seguir começa a falar dos ucranianos que morreram de fome - e torna-se cada vez mais aguerrida.

A que se deve esta extraordinária mudança de tom ao passar das tragédias contemporâneas (crianças latino-americanas roubadas aos pais, massacres de palestinianos, etc.) para a tragédia dos ucranianos no princípio dos anos trinta do século passado? Será que para Aline Beuvink há "vítimas com mais pedigree que outras" (para usar a sua própria expressão)?
Arrisco uma explicação: o que lhe interessa não são as vítimas propriamente ditas, mas o pretexto que elas lhe dão para poder atacar os comunistas. 

O seu discurso desenvolve-se num crescendo bélico, impositivo e violento, ora misturando factos e suposições, ora proferindo ataques contra os seus colegas deputados do PCP, como se acreditasse realmente que é possível impor ao mundo a sua interpretação histórica do Holodomor atirando palavras como pedras para o meio da Assembleia Municipal de Lisboa. 

Ela lá saberá, que se apresenta como historiadora. Eu só sei que nunca vi um historiador a expor a sua tese com esta violência verbal e este tipo de intimidações a quem o ouve.
E sei, sobretudo, que nenhuma vítima merece ser instrumentalizada desta maneira. 

(Permitam-me uma incursão no domínio do ridículo: pelo modo como a retórica desenvolve, quase só lhe faltou rematar com um "e até é pena que tenha sido apenas canibalismo aos milhares! É que se fosse aos milhões, maior era o brilharete que eu fazia aqui nesta Assembleia Municipal de Lisboa! Disse!") 

Confesso que me foi muito penoso assistir a este discurso devido a dois elementos que, sendo marginais, foram interferindo cada vez mais com o meu esforço de escuta atenta e neutra: o gesticular furioso e o estilo de roupa. Aqueles gestos e aquela fúria na voz fizeram-me pensar em discursos alemães de muito má memória. Para piorar, a sua roupa lembra imenso a farda das ajudantes dos SS nos campos de concentração. Bem sei que não foi (nem seria nunca!) a intenção da Aline Beuvink, e por isso deixo aqui o alerta: se quiser fazer discursos cheios de ódio e raiva contra os comunistas, melhor seria ter especial cuidado com a linguagem corporal e com o estilo de roupa, para não despertar no público em geral associações  tão infelizes quanto contraproducentes do ponto de vista da eficácia do discurso.

Dito isto, deixo um apelo aos responsáveis do PCP: já podiam (citando o Konstantin Wecker fora de contexto) "fazer a revolução a ver se isto acalma". Demarcavam-se dos crimes cometidos por Estaline e por todos os totalitarismos dos regimes comunistas, afirmavam que foram erros trágicos que não podem repetir-se nunca mais, e assim libertavam o partido desse enorme calcanhar de Aquiles. 


6 comentários:

Jaime Santos disse...

Lamento, Helena, mas o problema é justamente tratar os crimes estalinistas (os crimes do comunismo não começaram com Estaline, aliás, Lenine e Trotsky não eram propriamente flores que se cheirasse) como erros no processo revolucionário.

O comunismo na sua versão marxista-leninista/maoísta/norte-coreana/cambojana etc já foi tentado demasiadas vezes com os resultados que se conhecem para a única conclusão óbvia ser a de que este sistema deve ser atirado sem remissão para o caixote do lixo da História, tal qual o nazi-fascismo.

Já sei que me irá dizer que os objetivos do movimento comunista são nobres enquanto os dos nazis são aviltantes e isso é verdade, mas o problema é que a procura de justiça não se limita aos objetivos, diz também respeito aos meios. Aliás, a procura de justiça diz sobretudo respeito aos meios... De boas intenções está o Inferno cheio. Bakunine dizia que o único objetivo de uma ditadura (mesmo do proletariado) é a sua eternização...

O PCP sofre efetivamente de uma profunda esquizofrenia. Por um lado, tem um historial incomparável na luta contra a ditadura de Salazar e todos os democratas, de Esquerda ou de Direita, lhe devem estar agradecidos por isso.
É também uma pedra basilar do nosso sistema político e não são as suas posições soberanistas e anti-europeias que são por si censuráveis (muito embora não disponha de facto de um programa para retirar Portugal do Euro e da UE, porque isso o obrigaria a assumir a dificuldade da tarefa, sendo que essa ausência é manifestamente irresponsável e demagógica).

Mas por outro lado, o apoio que o PCP ainda dá a ditaduras como a China, Cuba, Vietname (parece que se desvincularam da Coreia do Norte, o que são boas notícias), assim como a sua defesa do legado da URSS, tornam a sua posição soberanista uma anedota.

Não existe soberania que não aquela que é exercida através do voto, soberania aliás limitada, porque não é exercida pelo povo no seu conjunto e sim pelo Governo de turno (a Lei é que é soberana).

Só que no dia em que o PCP reconhecer a contradição entre estas posições, efetivamente acaba, seria como se a ICAR reconhecesse a irrealidade da ressurreição de Cristo...

Aquando da nomeação da Rita Rato como diretora do Museu da República e Resistência, ergueram-se vozes contra ela, por causa da ausência de experiência nessa área, mas sobretudo por causa de uma entrevista de 2009 em que ela dizia não desconhecer a existência do Gulag...

Ou se fez de parva, ou quis fazer de nós parvos...

Jaime Santos disse...

Ah, e o Louçã, que como analista é por vezes brilhante, tem um sentido de humor de um tijolo. Sempre que abre a boca para ser engraçado sai asneira...

Helena Araújo disse...

Aqui a católica tem alguma experiência com sistemas que têm ideias muito boas e práticas muito péssimas.

E não seria como a ICAR reconhecer a irrealidade da ressurreição de Cristo, mas a impossibilidade de estabelecer o reino de Deus na terra. Tanto os cristãos como os comunistas deviam ser apenas o sal da terra, mas não a terra toda.

Jaime Santos disse...

A ICAR não reconhece a possibilidade de estabelecer o Reino de Deus na Terra, porque se este agnóstico ainda se recorda do estudo da doutrina do tempo em que foi católico, a ICAR acredita na Segunda Vinda de Cristo, e nos novos Céus e nova Terra de que fala, creio, a Epístola de Pedro (cito de memória)...

Os comunistas deveriam reconhecer algo que a ICAR reconhece (pelo menos desde o Concílio do Vaticano II :) ), que o Sábado se fez para o Homem e não o contrário.

Todo e qualquer sistema de valores que não coloca a Pessoa Humana no seu centro torna-se injusto, porque impiedoso (no sentido de implacável). A fazer lembrar a crítica a um comunista famoso, Sartre, creio, de quem se dizia que se gostava muito da Humanidade, não gostava lá muito de Pessoas...

Imolar seres humanos no altar do futuro paraíso terrestre não anda muito longe do que queriam fazer os nazis... No Vaterland do Robert Harris de que falou há pouco tempo, o Exército Alemão liberta o Gulag...

Como diz creio que o juramento de Hipócrates, ao menos não faças mal...

Aqueles que melhor interpretaram a Doutrina Cristã são naturalmente os Místicos, quer dizer, os Poetas e os Humanistas. Olhe para esta pérola saída do D. Quixote em que esta personagem aconselha Sancho Pança sobre a administração da Justiça:

https://direitomemoriaefuturo.wordpress.com/2018/02/24/o-decalogo-da-justica-de-dom-quixote/

E é por causa dessa Misericórdia que o catolicismo ainda poderá, eventualmente, ter salvação...

Já o comunismo, enquanto tal, não tem salvação nenhuma. Mas um sistema de cooperativismo industrial que se desenvolva a partir do capitalismo com base na tentativa e erro e sem dogmas pode muito bem ser o caminho que nos resta para superar o sistema económico existente, que ameaça inclusivamente a nossa sobrevivência enquanto civilização tecnológica, senão mesmo enquanto espécie.

brancas nuvens negras disse...

Um debate que se eternizará, como aqui se vê, mas que durará enquanto houver classes sociais com interesses antagónicos. Uns farão por mostrar que acreditam no que a história nos ensina quanto à luta de classes e outros mostram a raiva que têm a essa realidade, preferindo não perder previlégios e perpétuar esta sociedade injusta, corrupta, putrefacta ou então ainda não perceberam nada do mundo em que vivem.

Jaime Santos disse...

A luta de classes é uma realidade, aliás registada há muito, desde pelo menos os conflitos entre plebeus e patrícios na Roma Antiga.

O problema é a resposta que se quer dar a essa realidade, promovendo a violência para a resolver e matando a liberdade dos indivíduos, o que compromete o próprio ideal pelo qual se pretende lutar.

O Terror na Revolução Francesa conspurcou os ideais da mesma e fez o relógio voltar atrás várias décadas pelo menos.

A Justiça não pode ser alcançada por meios injustos e o objetivo de uma ditadura é tão somente a sua perpetuação. Aliás, também havia (e ainda há nos que sobram) classes sociais nos Países Socialistas.

Por isso, esta sociedade, por muito imperfeita que seja, é cem vezes preferível aos amanhãs que cantavam e que não resultaram noutra coisa que não despotismo, penúria e destruição ambiental.

A descrição que a Helena Araújo deu uma vez de uma prisão da Stasi que visitou e dos testemunhos daqueles que sofreram a repressão da polícia política da RDA é elucidativa.

Eu também tive ocasião de conhecer alguém, filho de um Pastor Luterano na antiga RDA, que depois participou nas manifestações que levaram à queda do regime comunista. Ele contou-me a humilhação que sofreu por ter sido objetor de consciência (recusou-se a integrar as unidades de combate do exército da RDA) naquele tempo...

E a História ensina-nos sobretudo que no fim a razão triunfa sempre sobre a vontade. Nem que seja sobre ruínas. As da Alemanha Nazi ou as da URSS...