Sobre a frase de Putin que o papa Francisco atribuiu erradamente a Merkel
[ dizia assim: "É
preciso acabar com a política irresponsável de intervir e construir a
democracia noutros países, ignorando as tradições dos povos." ]
queria dizer que concordo, mas com uma reserva: ninguém deve ser obrigado a respeitar as tradições do seu próprio povo. Se me deixassem mandar, impunha a criação de corredores humanitários periódicos para deixar sair quem não se dá bem com essas tradições. Bem sei que é um desejo completamente irrealista, mas deixem-me sonhar...
(Oh, deixem-me sonhar! Se fosse possível às afegãs sair do seu país, quantas ficariam lá a respeitar as tradições do seu povo? E quão depressa os taliban, os chefes tribais, os chefes das aldeias e os chefes de família iriam dar consigo dispostos a rever as tradições do povo, só para que as mulheres tivessem motivos para ficar?)
Também gostava de perguntar o que é isso, as "tradições dos povos". Estão a falar de tradições de milénios, de alguns séculos ou de uma ou duas décadas?
Talvez trocasse a expressão "tradições" por "fases da História desse povo", e reformulava a frase:
"É preciso acabar com a política irresponsável de intervir e construir a democracia noutros países, forçando esses povos a saltar fases e impondo-lhes uma evolução exógena."
Mas depois penso na Alemanha nazi, e no livro Vaterland. Se os nazis não tivessem sido derrotados, a perseguição mortal aos judeus, aos ciganos, às testemunhas de Jeová e às pessoas com deficiência, entre outros, e a escravização dos povos (eles diziam: as "raças") de Leste iam tornar-se "tradições dos alemães". Ou os taliban afegãos: antes de chegarem ao poder, em 1996, as tradições daquele povo eram outras (se é que se pode falar em "tradições de um povo" quando há uma diferença tão grande entre a vida em algumas cidades e os costumes no resto do país).
De modo que volto à frase inicial. Concordo que não se pode invadir um país para lhe impor a democracia. Mas é preciso completar: a comunidade internacional não pode ficar de braços cruzados vendo um país espezinhar Direitos Humanos - mesmo que o faça em nome da tradição do povo. Não pode invadir com exércitos, mas tem de intervir por meio de um incansável diálogo, de negociações, de contrapartidas.
(E mais o tal corredor humanitário, se fosse possível. Ou então, tentar criar "ilhas" progressistas dentro desse território, um pouco à semelhança do que aconteceu na Europa medieval, quando começaram a surgir os burgos, com costumes diferentes e mais liberdade.)
Este post ia acabar aqui, mas entretanto ocorreu-me que nenhum país gosta que venham pessoas de fora meter-se nos seus assuntos. Imaginei por exemplo organizações russas em Portugal, a apostar no diálogo, nas negociações e nas contrapartidas para acabar com a nossa famosa agenda LGBTQ, que na Rússia é considerada um atropelo aos direitos das criancinhas. Ou alguma ONG norte-americana a instalar-se em Portugal para tentar acabar com o "holocausto dos fetos".
Quem decide, a nível mundial, o que é certo e o que é errado?
Conclusão: só sei que nada sei.
(Mas aquele corredor humanitário: isso é que era!)
4 comentários:
Fica apenas uma pergunta, dirigida a Vladimir Putin, quando a URSS, da qual ele foi fiel servidor (na RDA, outro Estado cliente, onde a URSS reprimiu a revolta operária de Junho de 1953), invadiu o Afeganistão em 1980 para proteger o Governo comunista de um Estado cliente, Governo esse a braços com a revolta da população por causa de medidas políticas impopulares, que punham em causa velhas tradições, estava então a fazer o quê? É que foi esse ato que deu origem a toda esta confusão (leia-se tragédia).
É que pelo menos os EUA têm a desculpa de que invadiram o Afeganistão para liquidar uma organização terrorista responsável por um ataque hediondo no qual morreram milhares de pessoas e depois de os talibãs se terem recusado a entregar Bin Laden e comparsas...
A memória é uma coisa lixada...
A invocação da defesa dos direitos das mulheres por Laura Bush e pela administração do seu marido foi apenas mais um argumento para consolidar o causus-belli...
Na verdade, em 1996, os EUA e a França, se bem me recordo de ter lido na altura, facilitaram a chegada dos talibãs ao poder na esperança de que a estabilização do Afeganistão sob um Governo Central forte, mesmo que presidido por gente com mentalidade medieval (um insulto ao Islão da Idade Média, na verdade :) ), permitisse a construção de um pipeline que iria passar pelo País...
A questão que se coloca não é, penso eu, a da Universalidade dos Direitos Humanos e sim dos meios que se devem utilizar na arena internacional para os promover... Impor a democracia, ou os direitos das mulheres, ou o que seja, à bomba e a míssil de cruzeiro, só pode servir para enfraquecer a justiça da causa desses direitos...
Claro, Putin está-se nas tintas para os direitos humanos, basta ver a repressão das oposições na Rússia...
E ele também não se coíbe de intervir militarmente naquilo que considera ser a área natural de influência da Rússia, veja-se o que acontece na Ucrânia ou na Síria... Mas fá-lo para proteger o seu filho-da-mãe local, tão só e apenas...
Tudo isso, mas: a frase faz sentido. Independentemente de quem a proferiu.
Não se pode invadir países para impor a democracia à força.
E muito menos se pode invadir países por outros motivos, e depois dizer que era para libertar as mulheres.
Sim, a frase faz sentido, Putin é que deveria refletir nela. É que parece que não mudou de opinião, olhe-se para a intervenção da Rússia na Ucrânia e para as considerações do PR russo sobre uma anexação deste País pela Rússia e de como isso seria do interesse dos ucranianos...
É que de outro modo poderá ser acusado de hipocrisia...
Olha para o que eu digo... :)
Enviar um comentário