21 junho 2021

donos da fé dos outros


A notícia sobre a proposta de recusar o sacramento da comunhão a políticos que se recusem a impor à sociedade, em forma de lei, certos ensinamentos da Igreja Católica (pode ser lido aqui) encheu-me de perplexidade e asco. Nunca esperaria que no século XXI os bispos católicos norte-americanos debatessem a possibilidade de castigar o detentor de um alto cargo político pelo facto de a sua política defender algo que vai contra a doutrina da Igreja (como os direitos dos LGBT+ ou o direito ao aborto).
(Tanto mais que, curiosamente, se esqueceram de outras políticas que também atentam contra a mesma doutrina, tais como a pena de morte ou a indiferença do Estado perante os pobres. Mas, mesmo que tivessem pensado em todos os casos: seria igualmente inadmissível.) 

Sinto-me chocada com a crueldade de punir de forma tão dolorosamente pessoal os católicos que se recusarem a abusar do seu poder político para impor ao país os seus valores religiosos. De facto, a decisão de os punir pessoalmente, recusando-lhes o sacramento da comunhão, é uma tentativa de transformar os políticos católicos em reféns da ortodoxia da Igreja Católica.
Pensarão esses bispos que podem aproveitar o facto de o presidente dos EUA ser católico para instalar uma espécie de sharia cristã na sociedade? É inadmissível. 

É certo que houve bispos que votaram contra esta proposta, há padres que garantem que não recusarão a comunhão ao presidente dos EUA, e a proposta foi firmemente criticada pelo Vaticano. 
Mas o que me surpreende - e, mais do que isso, assusta e provoca um profundo sentimento de rejeição em relação àqueles bispos e à Igreja que os pariu (desculpem, mas é mesmo o termo) - é que lhes tenha sequer ocorrido que isto era uma possibilidade.

Decididamente: a Igreja deles não é a minha. Em primeiro lugar, porque estão a usar o seu poder religioso para atacar valores democráticos fundamentais - esta gente é perigosa para o Estado Democrático. Além disso, também atacam o ideal cristão de comunhão.

É importante ter presente que ninguém é dono de Jesus Cristo ("noli me tangere"), e que a hierarquia da Igreja é muito mais serviço que poder. Estes bispos estão a fazer a figura do porteiro que, sem o saber, tenta barrar o caminho a um  grande amigo do patrão. 

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Alguns dirão: "ah, mas se recusassem a comunhão ao Hitler já achavas bem, não é?"
É. Se recusassem a comunhão a um "anticristo", achava bem. Mas um político que respeita o princípio da separação entre a sua própria religião e o Estado/país que serve não é um anticristo. 


4 comentários:

Lucy disse...

Mais uma vez completamente de acordo contigo, até já chega a ser um pouco irritante.

Helena Araújo disse...

Neste caso, o que me surpreenderia seria haver pessoas a dizer que acham muito bem instalar uma sharia católica nos EUA.

Jaime Santos disse...

Bom, pela mesma ordem de razões, deveriam de facto recusar a comunhão a todo e qualquer católico que se recuse a defender ou a aplicar literalmente a doutrina social da Igreja em aspetos tão relevantes como o tratamento das mulheres, o tratamento dos trabalhadores, a não-discriminação de pessoas com base na origem étnica (porque, infelizmente, a ICAR ainda defende a discriminação das pessoas LGBT, mau grado os progressos, com avanços e recuos, que têm sido feitos), a proteção da casa comum, etc, etc...

Houve clérigos latino-americanos nos anos 60-70, que no âmbito da teologia da libertação, se bem me recordo, aplicaram a excomunhão formal (o que se propõe, e que é o castigo que se aplica aos recasados, é uma excomunhão informal) a certos políticos pelas violações dos direitos humanos. A hierarquia da ICAR sob João Paulo II perseguiu e acabou com a teologia da libertação (a CIA deu uma ajuda).

Se não me engano é em Mateus que Jesus admoesta os hipócritas que penduram na túnica tiras com as leis bíblicas escritas e que depois se esquecem de as seguir...

Helena Araújo disse...

Na Alemanha, recusam a comunhão a divorciados que voltam a casar.

Tenho algumas dificuldades em relação a essas excomunhões, formais ou informais. Parece-me bem que a Igreja não se deixe manipular (como, por exemplo, quando o Trump foi brandir uma Bíblia em frente a uma área confessional que tinha sido danificada por manifs). Mas recusar abrir-se a quem realmente a procura (apesar dos erros que tenha cometido) é um disparate.
Prefiro um padre como o Dom Camilo, que não perdia nenhuma oportunidade para desancar em público os comportamentos que considerava errados.
Ou o pastor de Leipzig, na altura das manifs de segunda-feira, que foi informado que tinha a igreja cheia de membros da Stasi. Pensou: "mas que bela oportunidade de lhes dar a conhecer o Evangelho!"