04 maio 2021

proposta para tratar o problema do assédio sem passar pela conspurcação geral do #metoo

Parece que o #metoo chegou finalmente a Portugal, e - como não podia deixar de ser - chegou com a transparência e delicadeza de um furacão. 

Se acusam sem nomes, ai e tal, digam os nomes. Se dizem os nomes, ai e tal, isto é manobra dela, e além disso não tem provas. E já a conhecemos de ginjeira: essa histérica, essa arrivista, essa oportunista.

Se contam o que aconteceu, ai e tal, quem a mandou permanecer quando o caso lhe começou a cheirar mal? Não tinha mãos para lhe dar uma bofetada, boca para o mandar abaixo de Braga?
(Esquecem esses brincalhões que as mulheres têm sido condicionadas, século após século, para não ter ouvidos, para não reagir, para não fazerem figuras de histéricas, para não serem desagradáveis nem inconvenientes, para não dar vexame e - sobretudo! - para não criarem situações em que os homens se possam sentir desconfortáveis.)

Se contam quando aconteceu, ai e tal, porque será que (essa histérica, essa arrivista, essa oportunista) só se lembrou de contar agora? 

Obrigadinha. Muito nos ajudam, e não vou chover mais nesse molhado. Mais vale gastar o tempo a tentar arranjar uma solução a contento de todos.

Por estes dias tenho pensado muito na coragem do director do liceu berlinense católico que, ao ouvir uns zunzuns sobre um antigo professor ter assediado alguns rapazes nos anos 70 e 80, em 2010 escreveu uma carta a todos os alunos que tinham frequentado a escola nessa altura, pedindo ajuda para esclarecer o que se passara há três ou quatro décadas (isto é uma indirecta para quem pergunta "e porquê só agora?"). As respostas foram analisadas por duas comissões independentes - uma delas chefiada por uma jurista, e a outra chefiada por uma antiga ministra da Saúde.  A atitude deste director da escola deu origem a revelações sucessivas de crimes de pedofilia na Igreja Católica alemã, a que se seguiram revelações sobre casos idênticos nas Igrejas Evangélicas, num internato da elite de esquerda (este chocou-me especialmente, porque os antigos alunos vieram em defesa dos professores e da escola, dizendo que "era um dar e receber"), em escolas de desporto, em coros infantis e em muitos internatos/orfanatos da RDA. 

O que foi importantíssimo para um desenrolar digno do processo de investigação foi o facto de se tratar de uma iniciativa da instituição sobre a qual havia rumores, oferecendo às vítimas uma plataforma de seriedade e confiança para revelarem o que lhes acontecera. 

E é justamente a dignidade e eficácia daquele processo que põe em evidência o que há de mais errado, perverso e desencorajante no processo #metoo: o carácter individual das denúncias, que nos conduz imediatamente para reacções impulsivas e cegas de ataque ou defesa das pessoas envolvidas. 

Muito melhor seria imitar aquele director do Kanisius Kolleg: se existem rumores, a instituição escreve a todas as pessoas que poderiam ser potenciais vítimas, e envia as respostas para uma comissão de investigação independente. 

Como já vamos avançadinhos no século XXI, sugiro até que, para facilitar, se crie uma app na qual cada pessoa pode descrever o assédio de que foi vítima, identificando o autor do assédio com o nome completo e a empresa/instituição onde ocorreu. Os dados são tratados mecanicamente, e ninguém pode ter acesso a eles. Quando determinado nome começar a aparecer repetidamente, a app envia os respectivos relatos a um grupo de investigação criado especialmente para estes casos. 

Desse modo, o processo iria directamente para a Justiça, sem passar previamente pelo pelourinho das redes sociais, e sem arrastar pela lama o nome de todos os envolvidos. 

Bem sei que esta app só identificaria os casos de "serial sexual harassment". Mas tinha, apesar disso, duas vantagens: em primeiro lugar, não era apenas a palavra de uma pessoa contra a palavra da outra, porque haveria mais do que uma testemunha para a acusação. Em segundo lugar, a existência desta app teria o papel de radares de velocidade bem visíveis numa estrada: o pessoal teria o cuidado de cumprir as regras, por não haver dúvidas sobre o registo de cada incumprimento. 

(- Ai, e tal: já não se pode fazer um elogio a uma pessoa?
 - Pode, pode. Se tiver a certeza que ela vai gostar, pode.) 

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Optei por escrever "pessoas" em vez de "homens/mulheres" para evitar que alguns enfiem a conversa pelo beco retórico do "ai e é só as mulheres? Também há mulheres chefes que abusam do seu poder para assediar os subordinados..."
Para já, tratemos de resolver o problema do assédio de forma pragmática e digna.
O debate sobre a estrutura machista e patriarcal que nos condiciona é importante e urgente, e pode ser feito em paralelo. 


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