O teólogo Hans Küng morreu. No Spiegel há um bom artigo de Philipp Gessler sobre ele, com o título "o infalível crítico dos papas", que resumirei em traços breves a seguir. Gostei especialmente da síntese: "Um obituário para um pensador vaidoso, para quem a Igreja era tão importante que nunca desistiu de a melhorar".
Diz o artigo: A vaidade em Hans Küng era tão evidente que quase se tornava um traço divertido e charmoso. Contam-se sobre isso muitas anedotas, como esta: três cardeais tocam à campainha de Hans Küng em Tübingen e dizem-lhe "foi decidido que tu vais ser o novo papa!" Küng hesita brevemente, e depois responde: "Obrigado, mas não quero. Se aceitasse, deixava de ser infalível."
Durante décadas, Hans Küng atacou o dogma da infalibilidade papal com a sua língua afiada e os melhores argumentos da Teologia, da História da Igreja e da Exegese. Ninguém conseguia competir com ele.
Mesmo já em idade avançada, a agilidade do seu cérebro era impressionante: facilmente passava do grego para o latim ou o hebraico, ou de uma análise cristalina de São Paulo para outra de Kant, passando por um episódio passado com um papa do século V ou uma conversa tida durante o concílio Vaticano II, no qual ele teve um papel determinante.
O seu saber e a sua inteligência vinham a par de uma coragem inabalável, que o levou a lutar toda a vida para renovar a Igreja. Nascido em 1928, com 32 anos era já professor de Teologia em Tübingen. Aos 34 anos tornou-se um dos teólogos consultores do Vaticano II, o histórico concílio reformador, por escolha do papa João XXIII.
Já nessa altura Küng punha na ordem do dia temas que a Igreja Católica ainda não conseguiu resolver: o celibato forçado, a ordenação de mulheres, a democracia na Igreja, o ecumenismo.
Küng e Ratzinger foram colegas tanto no concílio Vaticano II como em Tübingen. Com o tempo, Ratzinger passou de colega a concorrente, opositor e quase inimigo. Cada um deles marcou a Igreja à sua maneira - Ratzinger no topo e Küng na base (embora com muito eco), Ratzinger cada vez mais reaccionário e acomodado e Küng cada vez mais radical.
Devido ao seu brilhantismo, Hans Küng gozou de alguma protecção dentro da Igreja até 1978. Mas a eleição de João Paulo II iniciou um "rollback" inédito. Em 1979 Hans Küng foi proibido de dar aulas de Teologia. A universidade de Tübingen ofereceu-lhe um lugar como professor independente de Teologia Ecuménica. Foi nesta posição, e também como presidente da fundação Weltethos (a partir de 1995), que publicou inúmeros trabalhos. Uma das ideias que defendia, e é a base do projecto Weltethos, é a de que não é possível haver paz no mundo sem haver paz entre as religiões.
Quando Ratzinger se tornou papa, Hans Küng visitou-o em Castel Gandolfo. A conversa não fez deles bons amigos, mas Küng deixou de criticar o seu "inimigo favorito" com a energia habitual. Dizia que não se pode esperar pelo próximo papa, é preciso ver o que se pode conseguir mudar hoje mesmo. Mas não queria acabar com o papado. Via esse cargo como um serviço numa perspectiva ecuménica.
Em 2010, quando já tinha 82 anos, afirmou: "Não tenho provas, mas tenho bons motivos para acreditar que a minha vida não irá desembocar no nada, do mesmo modo que o cosmos não pode ter nascido do nada. Acredito que morrerei para dentro de uma realidade inicial e última, a que chamamos Deus."
O autor termina o seu artigo afirmando que Hans Küng terá agora a resposta a todas as suas perguntas. O que me lembrou uma afirmação de Karl Rahner, também já de certa idade, quando lhe perguntaram se estava com medo da morte.
"Medo? Não. Estou cheio de curiosidade", respondeu ele.
6 comentários:
Grata pela tradução, otherwise...kaput.
(Essa da curiosidade e muito boa!)
Também achei muito interessante o artigo do Miguel Esteves Cardoso sobre ele.
Terá a resposta a todas as suas perguntas... Ou não...
Lucy, não li. É um dos artigos sem acesso a não assinantes.
Jaime Santos, neste caso, a ausência de resposta é uma resposta.
Até a sua réplica parte do pressuposto de continuação da existência daquele/a que questiona.
O nada não é resposta para coisa nenhuma.
Quanto a credos na vida extra-terrena, parece-me que há mais sabedoria nas palavras de Hamlet no seu solilóquio que em todas as religiões e filosofias do mundo, Helena Araújo.
E depois, aquilo é tremendamente belo e dura só alguns minutos...
https://www.youtube.com/watch?v=jK8am5ur7Ck
Resta talvez a consolação de que a existência de Shakespeare (ou quem lá for que escreveu isto) é uma daquelas poucas coisas que sugere que porventura, contra toda a probabilidade e mau grado todos os males do Mundo, Deus é mesmo capaz de existir.
Mas um Deus com um sentido de ironia semelhante ao do Bardo, pelo menos...
Jaime,
depois falamos. ;)
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