09 fevereiro 2021

criticar sem generalizar

No fim do ensaio do coro por zoom ficámos alguns minutos na conversa. Uma das colegas anunciou muito satisfeita que o pai, de 92 anos, vai ser vacinado amanhã. Mora na zona de Frankfurt. Outra disse que os pais e os sogros, também nonagenários, só vão receber a vacina em Março. Moram em Brandeburgo. Já a minha sogra, no sul da Alemanha, está a poucos dias de receber a segunda dose, apesar de ser uma jovem de oitenta e poucos anos. É estranho assistir a esta disparidade entre as Länder.  

Alguns colegas de coro começaram a falar dos espertinhos - como o político que se ofereceu (juntamente com os seus próximos) para tomar as vacinas que se iam estragar, argumentando que assim davam um bom exemplo aos renitentes. Cada pessoa tinha um caso para contar. E eu ouvia, divertida.

Aparentemente, na Alemanha também há muitos espertalhões. A grande diferença em relação ao que vejo em Portugal - e isso impressionou-me realmente - é que falavam deles como casos individuais. Reprovavam, mas não generalizavam. Nenhuma daquelas pessoas concluiu, com base nestes casos, que "este país é só corrupção" ou "estamos entregues à bicharada". 

Uma das frases que ouço frequentemente na Alemanha, quando se conhecem casos de alguém que se desvia dos valores comuns desta sociedade, é: "nós não somos assim". Mesmo que um ou outro descarrile e se afaste do que é considerado por todos como o caminho certo, a comunidade sabe quais são os seus valores e tem brio em respeitá-los. Os prevaricadores não são nem espelho da sociedade nem exemplo que desculpa os erros dos outros. São prevaricadores.
E isso é dito com todas as letras, como um veredicto que os deve cobrir de vergonha. 

Já em Portugal: li algures que, juntando os casos de sujeitos que abusaram do seu poder para serem vacinados antes dos outros e os casos de decisões precipitadas devido à urgência, como foi o daquela padaria, houve até agora 300 casos de vacinas que foram dadas sem respeitar as prioridades.
300 casos em 160.000. 

Isso quer dizer que 99,8% das vacinas foram dadas respeitando os critérios de prioridade. Mas o que ouço a muitos portugueses - nas redes sociais e na vida real - é o escândalo por causa das vacinas desviadas, e que "este país é só corrupção" e que "estamos entregues à bicharada". 

Que é como quem diz: "self fulfilling prophecy" em português.


6 comentários:

jj.amarante disse...

Na Alemanha também existe o aforismo: Os cães ladram e a caravana passa? Ou é algo que nos veio dos árabes ou dos berberes?

Helena Araújo disse...

Conheço o "cão que ladra não morde".

if disse...

Como gosto de vos ler! Ob2

Associação Cultural Vale de Santarém-Identidade e Memória disse...

É corrente, em Portugal, de facto, ampliarmos de modo exageradíssimo o que acontece pontualmente, em muita reduzida frequência e quantidade, passando para uma caracterização generalizada do tipo "somos um país de ladrões, de corruptos, de...". Este é o "discurso" mais inadequado, além de longe da verdade. No contexto actual, sobretudo, tem servido para arregimentar pessoas e angariar votos, por parte da extrema-direita. Por exemplo, quando dizem "há metade do país a trabalhar para a outra metade estar a viver à nossa custa", isto serve para instalar uma avaliação desse tipo e, daí, dela tirar partido. Algo convirá fazer, da parte de quem tem meios e conhecimentos para isso (na comunicação social, nas redes sociais) para opor uma visão sensata a esta manipulação.

JCS disse...

Em geral, o português terá um sentido crítico muito apurado. Em geral, o alemão terá um sentido de autocrítica muito apurado.
Será isto? :)

Helena Araújo disse...

eu diria que a crítica do "português" é muito estilo bota-abaixo e a do "alemão" é muito bota-acima. Uma crítica serve a desilusão, e a outra serve a correcção dos erros.