07 janeiro 2021

sinais dos tempos


Q-Anon - what else? (foto: Mike Theiler e Reuters via Spiegel)

Este filme, de 7 minutos, tem a melhor síntese que vi até agora do que aconteceu ontem em Washington DC. (Caso não esteja visível, é este filme: https://youtu.be/UBp42536IhE)


Alguns apontamentos, para estarmos atentos ao que acontece entre nós e não deixarmos que o nosso sistema democrático continue a resvalar na direcção deste abismo: 


A tomada do Capitólio como estádio superior do populismo

Vê-se no filme acima: alguns dos invasores gritam num tom de quem se sente ultrajado: "esta é a nossa casa! este é o nosso país!"
Num outro filme (que não consigo encontrar agora), onde se entrevistavam os invasores já à saída do Capitólio, um homem com ar de cidadão pacato afirmou que entrou no Capitólio porque essa é a casa do povo, e queixou-se por ter sido atacado pela polícia com gás pimenta. A ele, que é uma pessoa do povo, e estava a entrar na sua casa porque este é um dos seus direitos mais básicos. 
O modo como falou para a câmara não deixava qualquer dúvida sobre a sua profunda convicção de estar a participar num acto de decência democrática, e a sua surpresa por ter sido tratado com tanta violência absolutamente injustificada
O populismo fez o seu trabalho com este senhor de forma muito eficaz: ele acredita realmente no que estava a dizer. 



O ódio aos meios de comunicação social 


(foto: twitter)


Desinformação

Não demorou muito tempo até porem a correr a versão de que quem invadiu o Capitólio eram antifas disfarçados de MAGAs, e que o fizeram obviamente para dar má imagem dos MAGAs, os quais estavam a fazer uma manifestação pacífica obedecendo ao apelo de Trump, essa autêntica pomba da paz. 

O Washington Times ("Reliable Reporting. The Right Opinion." / onde aparece um popup que nos dá a escolher entre "Sim, quero receber notificações" e "Não, obrigado. Prefiro fake news") publica que uma empresa que faz reconhecimento facial terá identicado antifas entre as pessoas que invadiram o Capitólio
Este artigo explica bem como se produziram essas notícias falsas.
Este artigo informa sobre a identidade de alguns dos invasores - alguns deles são famosos (e não é por serem antifas - bem pelo contrário)
E este artigo mostra como alguns políticos conservadores deram eco às falsidades
Nos tempos que correm, pôr políticos a dizer o contrário do que aconteceu como se fossem notícias fidedignas é tão fácil como isso. E pôr pessoas a acreditar em "factos alternativos" - à revelia de todas as evidências, nomeadamente partilhas feitas pelos próprios adeptos de Trump nas suas páginas das redes sociais! - é uma brincadeira de crianças. 


Destruição e roubo



(fotos: https://metro.co.uk/2021/01/06/capitol-riots-pro-trump-protesters-loot-building-13861622/ Getty/AFP e Anadolu)





Fim do princípio de soberania popular exercida por sufrágio universal

(1) As estratégias institucionais para afastar certos grupos, com determinadas tendências políticas, das mesas de voto, são conhecidas há muito. O resultado foi particularmente visível nas filas intermináveis para votar em regiões onde o voto é maioritariamente democrata.
(2) segundo um inquérito realizado recentemente, 70% dos republicanos acreditam que Biden roubou as eleições a Trump. As pessoas podem ficar várias horas nas filas para votar, e os votos podem ser contados e recontados, mas no final o que conta é a interpretação subjectiva - e cinicamente manipulada - sobre a lisura do processo. 



O fascismo puro e duro




Texto de Abílio Hernandez no facebook:

Nenhuma Democracia pode afirmar que nunca será assaltada e vencida pelo fascismo.
É por isso que a Democracia não deve desvalorizar a sua própria defesa. E isso começa na escola. A História, a Filosofia, a Literatura, as Humanidades em geral não podem continuar a ser sistematicamente marginalizadas no curriculum. As crianças e os jovens precisam de aprender o que se passou na Alemanha, na Itália, na Espanha e em Portugal nos anos 20 do século passado e conhecer as trágicas consequências da desvalorização da besta e da cumplicidade com os seus arautos.
Quando alguns de nós alertam para os perigos do fascismo e defendem a necessidade de o combater, muitos apelidam-nos de velhos aprisionados algures num qualquer asilo da História.
Sermos mais velhos não faz de nós melhores pessoas. Como eu gostava, neste ano de 2021, de festejar os meus 20 anos e não os meus 80. Sermos mais velhos significa apenas que vivemos mais tempo, que décadas de História fazem parte das nossas vidas.
O campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau foi libertado no ano em que fiz 4 anos. O nazismo, a Shoah, o assassínio friamente programado e perpetrado de milhões de pessoas – judeus, ciganos, comunistas, homens, mulheres, crianças -, a fratura da humanidade entre puros e sub-humanos, a tortura sistematicamente praticada pela PIDE de Salazar sobre os resistentes antifascistas, o assassínio de Dias Coelho numa rua de Lisboa, tudo isto faz parte da minha vida.
Eu apenas tive a sorte de poder envelhecer.
Mas não perdi a memória.
Hoje, sinto um aperto na garganta. Vi o fascismo assaltar o Capitólio.
A desmemória e inimiga da História. E da Democracia.



"It started with words, and it ended in terrible places."


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