Desculpem voltar a falar da Alemanha, mas não consigo evitar lembrar-me de quando, há dez anos, a Angela Merkel acusou o modelo de "multiculti" de ter falhado, e afirmou que os imigrantes tinham de aderir ao "modelo de referência" alemão. A afirmação foi muito criticada, desde logo pelos termos em que foi feita (generalizando situações de âmbito muito delimitado, e ostracizando minorias), mas lançou um debate sobre os diálogos de culturas, sobre a pretensa necessidade do "modelo de referência" e sobre os contornos deste. Um debate urgente e necessário para encontrar um rumo no meio de algumas dúvidas sobre como articular as diferenças no seio da sociedade. Nomeadamente: escolas que não sabiam como reagir perante famílias que não queriam que as suas filhas frequentassem as aulas de educação física ou natação, ou que saíssem em passeios da escola; tribunais que não sabiam como decidir em caso de pessoas que tinham matrizes de valores diferentes da alemã (nomeadamente o juiz que não defendeu uma mulher da violência do marido porque "na cultura do casal a violência doméstica é vista com outros olhos e ela sabia ao que ia quando casou").
Deixando de lado o modo como a Angela Merkel lançou em 2010 o debate sobre a diversidade social, parece-me que esta questão é muito actual. Dez anos mais tarde, damo-nos conta de que esses imigrantes provenientes de culturas muito diferentes da nossa são apenas um pequeno vector da questão. As sociedades estão cada vez mais divididas em grupos de umbiguismo insanável, e o problema maior não vem dos "outros" (os que vêm de fora, ou os que nós tradicionalmente excluímos) mas de nós próprios. De facto, em Portugal, o "multiculti" dos nossos dias, o tal que a Angela Merkel dizia que não é bom para uma sociedade, diz respeito não às minorias étnicas mas às minorias ideológicas que recusam a ideia de um "modelo de referência". Nestes tempos de "factos alternativos", de teorias da conspiração e de fake news, é alarmante assistir à recusa crescente de um mínimo de consenso social baseado em critérios e valores amplamente reconhecidos.
O caso mais recente, com altos representantes do sistema democrático a propor tornar opcional a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, é uma escolha deliberada no sentido dessa "balcanização" da sociedade portuguesa. Em vez de promover na sociedade um debate alargado e continuado sobre o "modelo de referência" que deve servir de orientação a toda a comunidade, querem retirar à escola a possibilidade de exercer o seu dever de informar e debater segundo critérios claros.
Encerrar-se dentro das suas próprias convicções e recusar o debate é característica dos populismos - e das ditaduras. As sociedades democráticas têm de ser capazes de acomodar a diversidade de perspectivas (desde que se situem dentro do espectro democrático), em vez de escolherem deliberadamente um caminho de "balcanização" social, de fragmentação em grupos hostis fundados em valores e convicções estanques e inconciliáveis. Por isso mesmo me choca tanto ver algumas daquelas personalidades públicas a assinar tamanho ataque às boas práticas das sociedades democráticas. Eles terão sido sempre assim, ou resolveram encostar-se à extrema-direita populista por encontrarem ali terreno fértil para conquistar o poder, independentemente do custo para o país?
Não sabemos o que levou estas pessoas a atacar a escola pública e o seu papel na construção de uma certa coesão em torno de princípios básicos da nossa sociedade. Mas podemos defender-nos deste ataque: quem for a favor da escola pública como agente de construção de uma ética comunitária, contra a "balcanização" da sociedade portuguesa, que se está a fragmentar cada vez mais em grupos de valores e convicções estanques, pode subscrever este manifesto aqui:
"Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção!"
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Os temas da disciplina "Educação para a Cidadania e Desenvolvimento", que determinados interesses querem tornar facultativa, são os seguintes (copiei do DN):
"Direitos humanos, que incluem prevenção e combate ao discurso de ódio, prevenção e combate ao tráfico de seres humanos e direitos da criança; Igualdade de Género; Interculturalidade; Desenvolvimento Sustentável; Educação Ambiental; Saúde, que aborda saúde mental, educação alimentar, comportamentos aditivos e dependências, prevenção da violência em meio escolar e atividade física. São estes os domínios do primeiro grupo de Educação para a Cidadania, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade.
Do segundo grupo, obrigatório em pelos menos dois ciclos do ensino básico, fazem parte a Sexualidade, em que são tratadas questões como a identidade e género, o desenvolvimento da sexualidade, os direitos sexuais e reprodutivos - prevenção de relações abusivas e a maternidade e paternidade - parentalidade responsável; os Media; as Instituições e Participação Democrática; a Literacia Financeira e Educação para o Consumo; a Segurança Rodoviária e o Risco.
Já no terceiro grupo, com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade, constam o Empreendedorismo; o Mundo do Trabalho, a Segurança, Defesa e Paz; o Bem Estar Animal e o Voluntariado."
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