Partilho um texto do Vasco Pimentel no facebook. Esta maravilha de síntese sobre a questão da ofensa:
Eu nunca me ofendi.
Com nada, rigorosamente nada.
Não fico ofendido, pronto.
Falta-me o chip, suponho (faltam-me outros, eu sei, ninguém os tem todos).
Por vezes, isso sim, fico com a vaga ideia de que alguém tentou ofender-me. Sim, tenho a certeza, já aconteceu. Isso eu noto. Já que leio & converso sobre o assunto, parece-me ser capaz de identificar o gesto.
A minha reacção, no entanto, é sempre a mesma - e é involuntária, insisto: o gesto da pessoa que tentou ofender-me leva-me imediatamente a classificá-la. A ela, à pessoa. Fico a saber (foi ela que me forneceu a informação) que é burra, ou má, ou que sofre de um problema qualquer que a aflige. As consequências do gesto sobre a minha pessoa são inexistentes, nulas.
"Não passas dum imbecil", por exemplo. Sabendo eu que sim, passo dum imbecil, que sou outras coisas (passo de...), e que, por acaso, essa até nem é uma delas, a frase anula-se a si própria, sem necessitar de desencadear primeiro um processamento que passe pela humilhação, a dúvida ou a tristeza. Eu não sou imbecil, tal como já não era antes, tal como não serei depois. Nada se alterou, portanto.
É como se alguém te mija para cima, e depois te acusa de teres mijo a escorrer pelas calças abaixo. Eu tenho, sim senhor, mas quem mijou na rua & para cima dos outros foste tu (tu agora já não és tu, é o parvalhão que mija). Isso permite-me concluir o que eu tiver de concluir sobre a TUA pessoa. É estúpido concluíres o que quer que seja sobre a MINHA, visto eu poder provar que o mijo não me escorre espontaneamente pelas calças abaixo. Já contigo é bem diferente, visto que eu posso concluir, sem esforço, que tu, sim, mijas para cima das pessoas. Fico a saber isso, e di-lo-ei a quem me apetecer. Conclusão, só há UMA pessoa que sai prejudicada. E essa pessoa não é, não PODE ser eu. O mijo pelas calças abaixo não me atormentará sem mais um segundo da minha vida. A tua, porém, fica marcada para todo o sempre.
Tenho que ler mais sobre isso de "ficar ofendido", porque visivelmente não percebo nada do assunto.
The End.
Vasco Pimentel, aqui.
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Dois apontamentos à margem:
- Gostei muito da imagem do ofensor como um animal que marca o seu território às mijinhas: a ofensa como instrumento de delimitação de território e afirmação de poder.
(Que coisa tão ante-pré-histórica, que grande macaquice!)
(O que me lembra a expressão de uma amiga: "Isto não é o meu circo, isto não são os meus macacos.")
- Tenho a certeza absoluta que o Vasco Pimentel não escreveu a pensar nos chamados "snowflake", mas para o caso de alguém interpretar mal o texto, convém notar que a ausência desse "chip" só é possível em relações simétricas. Quando se trata de ofensas a pessoas que são quotidianamente sujeitas a humilhações e perseguições devido à sua condição de pertença a uma minoria, dizer-lhes que não se devem ofender e que a ofensa fica com quem a pratica seria insensibilidade e cinismo.
5 comentários:
O texto está bem escrito, mas falha o alvo. Desde logo, presume que quem se ofende se preocupa minimamente com a opinião de quem é (ou deveria) sentir-se ofendido.
A ofensa é também um ato de egoísmo. Haverá quem tenha consciência suficiente para se sentir atingido pelo texto pela mesquinhez manifestada, mas a maioria dos mesquinhos estão-se nas tintas. Por isso é que permanecem mesquinhos.
Depois, Pimentel ao escrever isto dá-se ao trabalho de mostrar que se dá ao desprezo. Mais valia limitar-se mesmo a dizer que os insultos ficam com quem os profere. Era mais conciso e elegante e poupava-nos a considerações mais ou menos escatológicas...
Jaime, não entendi a sua primeira frase.
E não tenho problema nenhum com a escatologia. A imagem de um ser primitivo a demarcar o seu território à maneira dos animais está muito bem conseguida. Pode ser que o ofensor não entenda, mas as vítimas da sua ofensa entendem, e sentem-se mais acompanhadas ao ouvir o riso generalizado que se dirige contra o ofensor.
Queria dizer que o Vasco Pimentel escreve este texto na esperança de que quem o procurou ofender o leia e se sinta atingido com isso. Duvido que tal aconteça. A primeira regra de um agressor que se preza é não ter consciência e uma pele grossa...
E depois a escatologia fá-lo descer ao nível de quem o tenta agredir. O cuidado com a linguagem não é de somenos, ela determina a forma como pensamos. O mais importante é não nos deixarmos arrastar pela lama. Don't wrestle with a pig, you get dirty and the pig enjoys it...
Numa altercação demorada com um colega húngaro que se revelou um anti-semita desbragado, calei-o porque resisti sempre a recorrer ao insulto que ele usava sistematicamente contra outrem (era suficientemente inteligente para não o usar comigo). Acabei por expor a sua hipocrisia, alternava um discurso piedoso com o vernáculo... Mandei-o ler os Evangelhos...
Há um conto maravilhoso, 'The Devil and Daniel Webster', que nos deveria ensinar uma ou duas coisas em relação à forma como tratamos quem nos maltrata...
Quanto mais polida e elevada a linguagem, mais eficaz... Bem entendido, podemos denunciar a hipocrisia, a falsa piedade, o orgulho e a falta de educação quanto quisermos...
Se calhar vamos ter de trocar mais algumas ideias sobre escatologia... :)
Uma colega minha tinha um truque para se proteger de um chefe prepotente: imaginava-o sentado na sanita, ou então em cuecas.
Vou ler esse conto. Obrigada pela sugestão!
Não preconizo que censuremos os nossos pensamentos, aí está um domínio em que (ainda) não é possível entrar. Digo apenas que a linguagem mais eficaz é sempre a mais elevada...
Outra figura que me é grada é o antigo líder trabalhista Nye Bevan. Combinava maneiras impecáveis com a absoluta derrisão do adversário.
O Stephen Colbert perdeu imenso quando abandonou a sua 'conservative persona'. A melhor sátira que é possível fazer é a caricatura de um comportamento absurdo...
https://www.youtube.com/watch?time_continue=13&v=ti21KpI-lCQ&feature=emb_logo
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