17 junho 2020

incontinências do carácter

Partilho um texto do Vasco Pimentel no facebook. Esta maravilha de síntese sobre a questão da ofensa:


Eu nunca me ofendi.

Com nada, rigorosamente nada.

Não fico ofendido, pronto.

Falta-me o chip, suponho (faltam-me outros, eu sei, ninguém os tem todos).

Por vezes, isso sim, fico com a vaga ideia de que alguém tentou ofender-me. Sim, tenho a certeza, já aconteceu. Isso eu noto. Já que leio & converso sobre o assunto, parece-me ser capaz de identificar o gesto.

A minha reacção, no entanto, é sempre a mesma - e é involuntária, insisto: o gesto da pessoa que tentou ofender-me leva-me imediatamente a classificá-la. A ela, à pessoa. Fico a saber (foi ela que me forneceu a informação) que é burra, ou má, ou que sofre de um problema qualquer que a aflige. As consequências do gesto sobre a minha pessoa são inexistentes, nulas.

"Não passas dum imbecil", por exemplo. Sabendo eu que sim, passo dum imbecil, que sou outras coisas (passo de...), e que, por acaso, essa até nem é uma delas, a frase anula-se a si própria, sem necessitar de desencadear primeiro um processamento que passe pela humilhação, a dúvida ou a tristeza. Eu não sou imbecil, tal como já não era antes, tal como não serei depois. Nada se alterou, portanto.

É como se alguém te mija para cima, e depois te acusa de teres mijo a escorrer pelas calças abaixo. Eu tenho, sim senhor, mas quem mijou na rua & para cima dos outros foste tu (tu agora já não és tu, é o parvalhão que mija). Isso permite-me concluir o que eu tiver de concluir sobre a TUA pessoa. É estúpido concluíres o que quer que seja sobre a MINHA, visto eu poder provar que o mijo não me escorre espontaneamente pelas calças abaixo. Já contigo é bem diferente, visto que eu posso concluir, sem esforço, que tu, sim, mijas para cima das pessoas. Fico a saber isso, e di-lo-ei a quem me apetecer. Conclusão, só há UMA pessoa que sai prejudicada. E essa pessoa não é, não PODE ser eu. O mijo pelas calças abaixo não me atormentará sem mais um segundo da minha vida. A tua, porém, fica marcada para todo o sempre.

Tenho que ler mais sobre isso de "ficar ofendido", porque visivelmente não percebo nada do assunto.

The End.

Vasco Pimentel, aqui.  

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Dois apontamentos à margem:

- Gostei muito da imagem do ofensor como um animal que marca o seu território às mijinhas: a ofensa como instrumento de delimitação de território e afirmação de poder.
(Que coisa tão ante-pré-histórica, que grande macaquice!)
(O que me lembra a expressão de uma amiga: "Isto não é o meu circo, isto não são os meus macacos.")

- Tenho a certeza absoluta que o Vasco Pimentel não escreveu a pensar nos chamados "snowflake", mas para o caso de alguém interpretar mal o texto, convém notar que a ausência desse "chip" só é possível em relações simétricas. Quando se trata de ofensas a pessoas que são quotidianamente sujeitas a humilhações e perseguições devido à sua condição de pertença a uma minoria, dizer-lhes que não se devem ofender e que a ofensa fica com quem a pratica seria insensibilidade e cinismo.


  

5 comentários:

Jaime Santos disse...

O texto está bem escrito, mas falha o alvo. Desde logo, presume que quem se ofende se preocupa minimamente com a opinião de quem é (ou deveria) sentir-se ofendido.

A ofensa é também um ato de egoísmo. Haverá quem tenha consciência suficiente para se sentir atingido pelo texto pela mesquinhez manifestada, mas a maioria dos mesquinhos estão-se nas tintas. Por isso é que permanecem mesquinhos.

Depois, Pimentel ao escrever isto dá-se ao trabalho de mostrar que se dá ao desprezo. Mais valia limitar-se mesmo a dizer que os insultos ficam com quem os profere. Era mais conciso e elegante e poupava-nos a considerações mais ou menos escatológicas...

Helena Araújo disse...

Jaime, não entendi a sua primeira frase.
E não tenho problema nenhum com a escatologia. A imagem de um ser primitivo a demarcar o seu território à maneira dos animais está muito bem conseguida. Pode ser que o ofensor não entenda, mas as vítimas da sua ofensa entendem, e sentem-se mais acompanhadas ao ouvir o riso generalizado que se dirige contra o ofensor.

Jaime Santos disse...

Queria dizer que o Vasco Pimentel escreve este texto na esperança de que quem o procurou ofender o leia e se sinta atingido com isso. Duvido que tal aconteça. A primeira regra de um agressor que se preza é não ter consciência e uma pele grossa...

E depois a escatologia fá-lo descer ao nível de quem o tenta agredir. O cuidado com a linguagem não é de somenos, ela determina a forma como pensamos. O mais importante é não nos deixarmos arrastar pela lama. Don't wrestle with a pig, you get dirty and the pig enjoys it...

Numa altercação demorada com um colega húngaro que se revelou um anti-semita desbragado, calei-o porque resisti sempre a recorrer ao insulto que ele usava sistematicamente contra outrem (era suficientemente inteligente para não o usar comigo). Acabei por expor a sua hipocrisia, alternava um discurso piedoso com o vernáculo... Mandei-o ler os Evangelhos...

Há um conto maravilhoso, 'The Devil and Daniel Webster', que nos deveria ensinar uma ou duas coisas em relação à forma como tratamos quem nos maltrata...

Quanto mais polida e elevada a linguagem, mais eficaz... Bem entendido, podemos denunciar a hipocrisia, a falsa piedade, o orgulho e a falta de educação quanto quisermos...

Helena Araújo disse...

Se calhar vamos ter de trocar mais algumas ideias sobre escatologia... :)
Uma colega minha tinha um truque para se proteger de um chefe prepotente: imaginava-o sentado na sanita, ou então em cuecas.

Vou ler esse conto. Obrigada pela sugestão!

Jaime Santos disse...

Não preconizo que censuremos os nossos pensamentos, aí está um domínio em que (ainda) não é possível entrar. Digo apenas que a linguagem mais eficaz é sempre a mais elevada...

Outra figura que me é grada é o antigo líder trabalhista Nye Bevan. Combinava maneiras impecáveis com a absoluta derrisão do adversário.

O Stephen Colbert perdeu imenso quando abandonou a sua 'conservative persona'. A melhor sátira que é possível fazer é a caricatura de um comportamento absurdo...

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