06 junho 2020

"diáspora"

Trinta anos a viver em #diáspora, e é isto:


1. Não sei a que terra pertenço. Gosto das duas. Ando entre uma e outra, e em ambas me sinto em casa e, simultaneamente, fora de casa. Na Alemanha sou a portuguesa, em Portugal sou a "alemoa".


2. Na diáspora os portugueses mantém os bons e os maus hábitos de casa. Já me aconteceu de uma "tia" portuguesa que vive em Berlim me ter olhado de alto a baixo com todo o descaramento para decidir em que nível do sistema português de castas me arrumava. Arrumou-me numa casta bem mais baixa que a dela, e passou a tratar-me de acordo com isso. Ora, isto devia ser um perfeito disparate em qualquer lugar do mundo - e numa sociedade descomplexada e igualitária como a berlinense, é-o ainda mais. E dá nas vistas: bem me lembro do choque de um amigo meu, alemão, quando a viu a começar a falar com outra pessoa enquanto eu ainda estava a meio da resposta à pergunta que me fizera. "Mas que grande falta de chá!", comentou ele, perplexo. Coitada da tia, não imagina a péssima impressão que deixa nas pessoas quando não está no seu habitat da Linha.


3. Quando fui morar para a Alemanha, há trinta anos, telefonava para os amigos portugueses para "rir em português". Era o que mais falta me fazia - mais ainda que o mar, ou o bacalhau.


4. Quando já falava algum alemão fui viver em casa de uma amiga, que tinha um filho de 3 anos. O miúdo adorava-me, mas ao mesmo tempo tinha algumas reservas em relação a mim, porque eu não sabia coisas básicas. Por exemplo, não sabia o que era um melro.
- Mãe, ela é tão burra! Nem sabe o que é uma "Amsel"!
- Não é burra - disse a mãe. É portuguesa.


5. Não conhecer as palavras foi um problema enorme, a princípio. Uma pessoa fica prisioneira dentro de si própria, incapaz de comunicar com o mundo. Incapaz de dizer o que pensa. Com muito trabalho entendia o tema da conversa, compunha uma frase para participar, dizia-a - mas entretanto o tema já tinha mudado. Eles ficavam a olhar para mim como se fosse, digamos, um bocadinho limitada.


6. Desde há quase uma década que participo na organização da sardinhada do 10 de Junho (ou por volta dessa data) para os portugueses que vivem em Berlim. O pessoal gosta imenso de passar a tarde num parque a comer sardinhas assadas em cima de broa, a conversar com amigos e conhecidos em pequenos grupos à volta de mantas de piquenique. É sempre coisa para várias centenas de pessoas. E depois, há a animação: o workshop de bombos, o grupo de folclore, os fados e guitarradas...
É tudo muito bonito, mas: imaginem a paciência dos alemães que moram nas vizinhanças do parque. O cheiro a sardinha, a barulheira toda a tarde, o parque cheio de gente.
Este ano não há sardinhada portuguesa em Berlim por causa da covid. E para o ano tenho de rever isto. É que algumas pessoas da vizinhança já têm protestado. Se fôssemos árabes ou turcos, talvez já tivéssemos tido problemas com a polícia e com os jornais. Mas por enquanto vamos escapando pelo meio dos pingos da chuva. Vou ter de fazer a minha parte e arranjar um local diferente para a sardinhada, para não desgraçar a fama dos portugueses da diáspora.
(Era o que faltava começarem agora a dizer que não é por sermos portugueses, é mesmo por sermos burros...)



Sem comentários: