08 abril 2020

salsichas e papel higiénico

Nestes tempos de Covid-19 não nos podemos distrair: o que ontem era verdade será amanhã visto como errado, os temas mais importantes apagam-se de um dia para o outro. O açambarcamento de papel higiénico, por exemplo, é muito princípio de Março de 2020.
Mesmo assim, traduzi um texto - aqui, no original - de Wladimir Kaminer, de 19.3.2020.
Reli-o hoje, e continuei a achar-lhe graça.


Antes de entrarmos em isolamento voluntário ainda fui com a minha mãe às compras. Ela queria comprar farinha, não para guardar em casa, mas para fazer um bolo. Não havia farinha à venda, e papel higiénico também não. As prateleiras de conservas estavam igualmente vazias. Até a pobre paté da Silésia em frascos de vidro, que durante anos e anos ninguém quis comprar, tinha abandonado a loja até à última unidade. Alguns consumidores decepcionados faziam selfies em frente às estantes vazias. A minha mãe, nascida em 1931, olhava para estes nativos frustrados tomada de alegria e um certo prazer pelo azar alheio. Sentia-se nostálgica. O que aqui na Alemanha era um estado de excepção tinha sido no nosso país, a União Soviética, a situação habitual. A população soviética não se deixava amedrontar pela falta de papel higiénico, todos sabiam muito bem qual era o jornal mais adequado à função, desde que não se usasse a primeira página para esfregar, porque tinha títulos grandes, ou seja: muita tinta. E as salsichas soviéticas, a nossa delikatesse favorita, só raramente se viam. O mais importante é que estes dois bens de consumo nunca estavam disponíveis em simultâneo. A salsicha só vinha quando faltava o papel higiénico; se a salsicha falhava, o papel higiénico aparecia imediatamente. Esta alternância mágica de bens de consumo suscitou na população a crença dialéctica de que um era produzido a partir do outro, ou seja, que o ingrediente principal da salsicha era o papel higiénico. E foi por isso que a minha mãe atravessou o supermercado tomada de uma certa nostalgia, antes de se entregar ao isolamento voluntário em frente à televisão. 

Abanou a cabeça e sorriu - mas não se riu. Como diz um antigo ditado russo: "Quem serviu no exército não se ri no circo". O inverso também é possível. 

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