23 março 2020

sem motivo para queixas

 
A pouco e pouco instalamo-nos na nova normalidade, e ganhamos outros hábitos. Por exemplo: levar um lenço de papel para proteger a mão que abre a porta da rua e o contentor do lixo. Ainda bem que quando toda a gente estava a exagerar no papel higiénico eu me lembrei de comprar antes um pacotão de lenços de papel. Têm dado muito jeito, nestes tempos de dar uma assoadela e deitar o lenço fora.  

Ontem - no que foi o sexto domingo consecutivo da semana passada - comemos espargos brancos frescos (que é época deles) com manteiga bretã. Podíamos estar tão pior...

Estou em casa, sim. Confinada. De resto, está tudo bem. Os miúdos estão em segurança relativa na nossa casa, num bairro de baixa densidade populacional em Berlim. Não temos preocupações de pagamento de dívidas, doenças crónicas, operações urgentes adiadas. É verdade que o Joachim está a trabalhar no hospital e tem um risco acrescido de ser contagiado, e que o Matthias quer trabalhar num supermercado ("os supermercados estão desesperados à procura de pessoal, e antes eu que uma pessoa de 60 anos, mãe") - mas vivemos um dia de cada vez.
Para muitos, esta crise é uma tragédia. Para nós, não passa de um pequeno conjunto de contratempos.
Se me apanharem aqui a queixar-me, mandem-me ter vergonha.

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De repente, do nada, o Joachim foi remexer o seu saco de survival kits para os festivais. Lá bem no fundo encontrou um pacote de 3 máscaras que comprara numa loja de bricolage. "FFP2!", anunciava ele, eufórico.

Já temos o que usar para entrar no supermercado - no caso de sermos portadores, as outras pessoas ficam um pouco mais protegidas. Mas temos de as poupar como se fossem ouro, para não se estragarem, e para não gastarmos todo o período de validade no primeiro dia.

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Ontem esteve um domingo cinzento. Pela janela vi duas crianças a atravessar a ponte. Seriam irmãos, teriam talvez quatro e seis anos, levavam máscaras e saltitavam pelo caminho. Dois passarinhos em liberdade, felizes, a alegrar as ruas desertas.

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Demos a volta habitual, mantendo a distância de segurança de todas as - poucas - pessoas com quem nos cruzámos. Desta vez fomos até ao porto, escolhendo os caminhos com mais escadas para fazermos exercício físico. Havia alguns iates, e parámos a apreciar os luxos que até agora nunca tínhamos visto de tão perto. O Katamaran, esse então, era de uma elegância extrema. Mas em tempos de covid-29 tudo isto parece deslocado e irreal. Temos outras preocupações, e o verdadeiro luxo é o comportamento solidário. Não me sai da cabeça a expressão usada por uma amiga para descrever a decisão voluntária de ficar em casa para proteger todos: um enorme abraço ao mundo.


 


 
 

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