08 fevereiro 2020

"jóia"

Jóias: como qualquer minhota que se preze, também eu herdei o meu quinhão de jóias das avós. O ouro da família: cordão e fio, alfinete de libras, brincos, contas de Viana.

A minha avó guardava as suas jóias numa gaveta da mesa da sala de jantar, fechadas à chave. Também herdei essa mesa, e surpreendi-me com a sua fragilidade. Qualquer martelada bem dada arrombaria a gaveta, libertaria as jóias guardadas. Tanta gente entrou e saiu pelas portas daquela casa, sempre abertas, e nunca ninguém se lembrou de rebentar a fechadura pueril. Não era a chave que protegia as jóias das minhas avós - era o respeito que a família merecia e que cada visitante se merecia a si próprio.

Muitos anos mais tarde, comprámos uma ruína em Weimar, fizemos obras, e mudámos para a casa nova quando ainda havia pintores a fazer os últimos trabalhos. Todas as tardes lhes servia um café e bolachinhas na melhor varanda, na melhor louça (a culpa é daquela história do Lavrador da Arada que vinha num livro da escola primária: condicionou-me). Um deles, no caminho entre a varanda e o trabalho, roubou-me a carteira. Achei que a teria posto noutro sítio, não desconfiei. Nem sequer me lembrei que o Joachim se tinha queixado que na véspera lhe tinha desaparecido o desodorizante e o perfume. O dia chegou ao fim, os homens foram para casa, eu tive um pressentimento e fui ver a caixa das jóias: vazia!

O primeiro instante foi de choque, o segundo foi de alívio. Pensei: agora já posso ir para férias descansada, nunca mais vou ter medo que me roubem o ouro.

Algumas semanas mais tarde, na Romaria da Senhora da Agonia, vi as minhas jóias mil vezes ao peito de outras mulheres, e senti que não tinha perdido nada. Continuavam no mundo, algures. Só não estavam na minha caixa.

[ Esta minha mania de não me deixar vencer pela adversidade ainda vai acabar mal. Estou mesmo a imaginar a cena: daqui a muitos anos, a Ceifeira a olhar-me com os seus olhos cruéis, e eu a rir:
- Calha bem que me leves o corpo, já me andava a estorvar um bocadinho.
Ela a rir-se, malvada:
- Ha ha ha! Eu levo tudo, corpo e espírito!
- Pensas tu!, direi eu escarninha. Não sabes o que está do outro lado, ainda não morreste!
Ressabiada, vira-me as costas, resmungando "então fica para aí e desenrasca-te sem mim!"
Rejeitada dentro do corpo há muito divorciado de mim, pensarei então que afinal há um tempo para tudo, um tempo para viver e um tempo para morrer, e que até nem é má ideia deixar-me ir completamente, esquecer enfim os erros que acumulei ao longo da vida e me continuam a incomodar. Uma libertação. Apresso-me a chamá-la, digo-lhe que estava a brincar, peço-lhe que não se amofine.
- Queres, então?
- Quero, pois!
- Amigas para sempre?
- Para sempre.
E lá vou eu desta para melhor, convencida que vou feliz. ]

2 comentários:

Margarida disse...

A vida encarregou-se de me ensinar a praticar o 'desapego' das coisas, mas não das causas, dos valores nem das pessoas. Mas é muito desagradável quando 'os amigos do alheio' não têm escrúpulos. Tem uma forma muito particular de 'dar a volta'. Abraço!

GP disse...

Um dia pediram-me para responder a uma pergunta "sem pensar". Claro que nada é sem pensar mas responder imediatamente não nos dá tempo para avaliações. A pergunta era "A tua casa está a arder e só podes levar contigo uma coisa. O que levas?" Eu imediatamente respondi "O quadro com a fotografia das minhas filhas pequeninas que sempre esteve no meu quarto." Depois pensei em quantas coisas de valor "comercial" poderia ter dito. E fiquei contente por ter "salvo a fotografia das minhas filhas". O exemplo do desapego da sua história é maravilhoso.
Abraço