11 fevereiro 2020

comer pizza como uma lésbica

(foto)

Aos 16 anos, a jovem berlinense Hatun Aynur Sürücü foi obrigada a casar na Turquia com um primo que ela praticamente não conhecia. Após o casamento, o marido revelou-se violento. Já grávida, fugiu dele e da Turquia, e procurou abrigo na casa dos pais em Berlim. Mas nem aí encontrou condições para viver e criar o seu filho em paz. Refugiou-se então numa casa abrigo de mulheres, acabou o secundário e começou uma formação na área da electrotecnia.

Aos 23 anos, a viver plenamente a sua vida de mulher livre e autónoma, foi assassinada pelos irmãos numa rua de Berlim. Acusavam-na de viver "como essas putas alemãs".

O crime chocou a Alemanha. Para além do assassínio, o crime de honra (melhor dizendo: crime de machismo despeitado) perpetrado em Berlim e o insulto inadmissível à sociedade alemã contido na frase "viver como essas putas alemãs".

Recomendo muito o filme "Nur eine Frau"/A Regular Woman, sobre Hatun, de Sherry Hormann. A realizadora quis fazer um filme sobre uma mulher forte e lutadora: uma vencedora, apesar do crime de que foi vítima.

Ao ler um artigo do DN sobre o regresso aos anos 50 e ao lema "o marido em primeiro lugar", foi nos irmãos de Hatun Aynur Sürücü que pensei imediatamente.

Que algumas mulheres sintam que a sua realização como pessoa consiste em apaparicar e mimar o macho lá de casa como se fossem mãe do marido, e o marido fosse um eterno puto de cinco anos, é algo que inscrevo na sua liberdade de escolher. Se isso as faz felizes, tanto melhor para elas.

Mas oficinas de feminilidade para ensinar as mulheres a "não comer pizza como uma lésbica" (como é mencionado no artigo do DN) colocam este movimento apologista da "esposa tradicional" num plano ideológico muito próximo do dos irmãos de Hatun Aynur Sürücü, para os quais é ponto assente que as mulheres não devem "viver como essas putas alemãs".

2 comentários:

Jaime Santos disse...

Aqui há uns anos, uma aluna iraniana de um colega alemão, recém-chegada à Alemanha, perguntou-lhe se podia usar o hijab ou se era recomendado que não o usasse, por causa de eventuais actos da Extrema-Direita, ao que ele respondeu de forma admirável, a diferença entre a Alemanha e o Irão é que neste País podes escolher. Ela abandonou o hijab imediatamente...

Estas mulheres se calhar fazem estas escolhas porque sentem o respaldo de uma Lei que lhes permite abandonar o marido se ele se tornar violento ou as desprezar. Justamente a Lei que lhe foi legada pela luta das feministas, como bem lembra o tuíte no fim do artigo do DN.

Que experimentem regressar aos anos 50 a sério, ou mais atrás. Sem direitos de participação política, sujeitas à dependência de um marido abusador que as poderia trair, agredir ou mesmo violar sem sanção...

Aquilo que mais irrita no reaccionarismo é a eterna visão kitsch do Passado...

Sílvia Loureiro disse...

A Serva, de Margaret Atwood, descreve uma sociedade que começou com estes radicalismos. Talvez uma visão futurista? Esperemos que não. Esperemos que se mantenha na ficção.