10 dezembro 2019

"Não venho para me vingar. Mas quero acusar, e não perdoo."

Hesito em traduzir este artigo que li hoje no Spiegel, porque descreve cenas de puro horror.
Mas o mundo não pode esquecer isto que aconteceu há 75 anos num dos países mais evoluídos do mundo. Temos de saber, temos de estar bem conscientes daquilo de que podemos ser capazes quando atribuímos a pessoas de certos grupos categorias que lhes sonegam a dignidade dos humanos.

O artigo do Spiegel informa que em Hamburgo está a decorrer o julgamento de um antigo SS, de 93 anos, que era guarda no campo de concentração de Stutthof, perto de Danzig. É acusado de participação no assassínio de 5230 pessoas. Na mesma sala está uma das vítimas daquele campo, que é testemunha de acusação: Abraham Koyski, de 92 anos.

Abraham veio de Israel para testemunhar neste processo. Perante o tribunal, fala com voz clara. Conta que tinha 16 anos quando chegou ao campo, juntamente com 800 judeus da Estónia. Conta que a viagem durou oito dias, e que não lhes deram comida nem água. Chegaram a meio da noite, e foram todos enfiados numa barraca com tão pouco espaço que ele dormiu em pé. 

Conta como os guardas chamavam os prisioneiros para espectáculos bizarros e sádicos. Num deles, um oficial SS - obviamente sob a influência do álcool - partiu uma cadeira e obrigou um pai e o seu filho a escolherem entre o oficial matar um dos dois, ou um deles matar o outro agredindo-o com os bocados da cadeira. O pai decidiu que o filho o devia matar, e o filho assim fez. No fim, o oficial matou o filho com um tiro.

Koryski fala do seu trabalho de retirar do crematório os ossos ainda inteiros, e da tarefa de recolher de manhã os corpos dos que tinham morrido durante a noite. Fala de chamadas a meio das noites de inverno para se irem lavar: obrigados a sair nus da barraca, a tomar duche, e a regressar à barraca molhados e nus, em noites de temperaturas negativas. Acrescenta: muitos morriam depois de acções como esta.

Mas Korsyski não se lembra de rostos. "Não queríamos ver a cara de nenhum deles. Tínhamos medo."

Perto do fim da guerra obrigaram-no a sair do campo para a marcha da morte. Quilómetros e quilómetros de marcha, sem comida nem bebida, sem roupa quente, sem sapatos. Os que morriam eram empurrados para a berma do caminho. Por várias vezes Korsyski se sentou, com a esperança de receber um tiro libertador. Mas erguia-se de novo - e foi por fim libertado pelo Exército Vermelho.

A juíza pergunta-lhe porque é que fez tanta questão de vir de Israel para testemunhar neste processo.

"Temia esta pergunta", responde Abraham Koryski, e começa a chorar. "Não é fácil para mim. Não venho para me vingar. Mas quero acusar, e não perdoo. Quero que o mundo saiba o que aconteceu. Todos devem saber tudo."

E a seguir:

"A minha vingança é a minha família, os meus familiares presentes nesta sala. São o sinal de que eu consegui sobreviver a tudo isso."

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"Todos devem saber tudo".
Por isso traduzi este artigo.


4 comentários:

João Torres disse...

Obrigado, Helena.

Celso José Gomes da Costa Furtado Cabral disse...

Muito grato, Helena

mariana teles alface disse...

Beijinho e obrigado Leninha.
Um abraço
Mariana Alface

Maria Lisboa disse...

Obrigada. Estamos sempre a (re)descobrir a crueldade extrema das atrocidades cometidas pelos nazis alemães... Impossível de facto perdoar.