13 agosto 2019

adenda à tal entrevista (eu bem dizia que a rtp ia ser obrigada a meter paletes de autocarros de futebolistas até eu terminar isto como deve ser)

Partilho e amplio aqui a resposta ao leitor que no meu post anterior perguntava:

Os alemães da ex-RDA (e descendentes) estão totalmente integrados, ou ainda se sentem desníveis? Em Portugal passou-se o mesmo com os portugueses regressados das ex-colónias - hoje, integradíssimos.

Para os que ficaram na região da RDA há inúmeros desníveis ainda, e a tendência é para se agravarem em alguns casos:
- Os salários e os apoios sociais ainda não são iguais aos da antiga Alemanha Ocidental. Cheguei a assistir a casos de salários diferentes para trabalhos iguais numa empresa, conforme o contrato de trabalho fosse para um "ocidental" ou um "oriental". Em parte explicava-se isso pela necessidade de pagar mais para conseguir trazer para uma empresa/instituição da antiga RDA alguém com um bom emprego na parte ocidental, mas obviamente que tal situação provoca tensões e ressentimentos.
- A região está em processo de desertificação. Por exemplo: a área coberta por um médico especialista é cada vez maior, a paisagem está cheia de casas e fábricas abandonadas, muitas escolas fecham. A propósito: há tempos li a notícia de uma aldeia da antiga RDA que ficou muito contente por receber famílias de refugiados, porque as crianças recém-chegadas permitiram aumentar o número de alunos de modo a impedir que a escola da aldeia fosse fechada.
- Excepto em alguns centros, como Leipzig, há pouco emprego para os residentes. Muitos pais de família trabalham na parte ocidental, e voltam ao fim-de-semana para estar com os seus. Outro problema de que já se tem falado bastante é que as mulheres jovens têm mais facilidade em partir para outros lugares em busca de emprego, mas muitos homens jovens ficam na terra onde nasceram - sem trabalho e sem companheira, muitos deles desenvolvem uma fúria surda que acaba por conduzi-los a contextos de extrema-direita.
- Os que vão viver ou trabalhar na parte ocidental ainda sentem uma certa necessidade de disfarçar o seu dialecto e a sua origem.
- Há um fenómeno estranho entre alguns dos nascidos depois da reunificação: estão a tomar para si as dores dos pais e sentem-se "roubados" desse país que deixou de existir antes de eles terem nascido.

Uma outra questão importante: os cidadãos da RDA que participaram nos protestos que deram origem à queda do muro não queriam trocar o comunismo pelo capitalismo - o que exigiam, antes de mais, era democracia e liberdade. As coisas aconteceram demasiado depressa, e no espaço de menos de um ano deram consigo a viver segundo as regras de outro país, com sistemas de valores e económico bastante diferentes, e num contexto de certa dependência e subalternidade.
Um exemplo da velocidade a que a transformação ocorreu: um amigo nosso, de Frankfurt an der Oder, contou que quando o marco alemão passou a ser a moeda da RDA (1.7.1990), nesse fim-de-semana os bancos ficaram abertos para fazer a troca do dinheiro; na segunda-feira, quando entraram nas lojas, as pessoas encontraram as prateleiras cheias de produtos da RFA. Foi como se no dia 2 de Julho de 1990 tivessem acordado num país diferente. É isto que está por trás daquela cena do "Goodbye Lenine" em que o rapaz vai procurar um frasco de conservas com etiqueta da RDA no caixote do lixo.  

Diferenças em relação ao caso português:
- Na Alemanha, a vida na parte ocidental continuou sem grandes alterações, enquanto o mundo dos que viviam na parte oriental sofreu uma derrocada profunda. Um só país, mas realidades muitíssimo diferentes. Em Portugal, as pessoas foram obrigadas a partilhar os espaços e a vida quotidiana.
- A antiga RDA foi "invadida" por "Wessis" com dinheiro que ficaram com o melhor do que havia. O bairro de Prenzlauer Berg em Berlim ou as casas apalaçadas de Potsdam são disso bom exemplo: os "Wessis" expulsaram os "Ossis" das suas próprias casas, dos seus bairros e, no caso de Potsdam, até do acesso a certas partes das margens dos lagos.
- Em Portugal pode dizer-se que os brancos estão integradíssimos, mas muitos negros ainda sofrem quotidianamente o efeito do racismo, de um modo como não acontece entre os alemães (uma vez que a diferença Ossi/Wessi não passa pela cor da pele).

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