Já passaram vários dias, e as redes sociais já deram trinta voltas. O problema é que a minha vida real também, e uma pessoa não dá vazão, de modo que venho com enorme atraso deixar o link para a entrevista da RTP (caso ainda alguém se recorde do que é que estou a falar) complementada pelo que disse e não passaram na entrevista, pelo que devia ter dito de outra forma, e ainda pelo que não disse mas bem podia ter dito.
A entrevista que passou pode ser vista aqui.
Quanto ao mais:
Vim para a Alemanha há quase trinta anos, três dias antes da queda do muro. Mas foi para o sul da Alemanha, de modo que assisti à História sentada num sofá em frente à televisão, como praticamente todos os outros portugueses. Ao meu lado, os pais do meu namorado assistiam também - de mãos dadas, e a chorar.
Há trinta anos, ainda no tempo da CEE e antes de o acordo de Schengen ter sido alargado a Portugal, mudar-se para a Alemanha não era nada fácil. De facto, sem ter um emprego já apalavrado era quase impossível. Para conseguir autorização de residência, dissemos que eu vinha para a Alemanha na qualidade de au pair da família do meu namorado. O que provocou grande risota nas instalações da Polícia de Estrangeiros, porque a funcionária que tratou do meu processo tinha andado na escola com o filho mais novo da família.
A Alemanha para onde vim morar era um país muito conservador, com o seu quê de machista e xenófobo, e fechado sobre si próprio. À economista portuguesa que eu era, com bons conhecimentos sobre os programas europeus de apoio a investimentos em Portugal, disseram peremptoriamente que o trabalho que me propunha fazer na Alemanha era algo para homens alemães e não para mulheres portuguesas. Que eu poderia, quando muito, arranjar um emprego de secretária de línguas estrangeiras.
Ou ainda pior: encontrei um trabalho que era praticamente de telefonista numa empresa que tinha passado parte da sua produção para Portugal, e não tinha entre os quadros superiores (e mesmo inferiores) ninguém que se sentisse confortável a comunicar em inglês, pelo que precisavam de quem os ajudasse a entender-se com os novos colegas do outro lado da Europa. Depois de esperar algumas semanas para verificarem se não havia nenhum alemão desempregado que pudesse desempenhar essas tarefas (há trinta anos, as empresas alemãs só podiam contratar um estrangeiro se houvesse a certeza absoluta de que este não tirava o emprego a nenhum alemão), assinei o contrato e comecei a trabalhar. Foi um ano duríssimo. Por um lado, sentia-me extremamente subaproveitada: o meu último projecto em Portugal fora a preparação do dossier que levou a que os solares da região de Basto fossem também abrangidos pelo programa de recuperação de casas antigas para Turismo de Habitação; uns meses mais tarde, na Alemanha, pouco mais fazia que telefonar para a terrinha a perguntar, por exemplo, quando é que os aparelhos X iam ser enviados para a Hungria, e receber de resposta que estavam à espera que lhes dissessem que livros de instruções deviam meter na caixa porque ainda não havia sinais da tradução húngara, e já agora porque é que os colegas alemães não devolviam as correias que seguravam as paletes. Por outro lado, eu era a única portuguesa no meio de todos aqueles alemães ressentidos contra os meus compatriotas que lhes roubavam a produção e o trabalho. Havia uma espécie de guerra surda, e calhara-me a mim estar na linha entre as frentes.
Trinta anos mais tarde, a Alemanha é um país muito diferente daquele que encontrei. Deram-se passos importantes para a igualdade de género (processo no qual a reunificação terá tido algum peso, uma vez que a RDA estava bastante mais avançada nessa área), a sociedade deu-se finalmente conta de que os trabalhadores estrangeiros são pessoas e não meros factores de produção. Alguns dos filhos destes imigrantes conseguiram conquistar lugares de destaque nesta sociedade - por exemplo no desporto, na política, na cultura, na ciência e no jornalismo. Mais recentemente, a onda generalizada de boa vontade no acolhimento às pessoas que fugiram da guerra na Síria e noutros países da região revelou uma Alemanha aberta e generosa; a coexistência com pessoas dessas culturas está a enriquecer a vida dos alemães, desde já na culinária e na música. Em três aspectos, contudo, as coisas correram bastante mal:
1. A reunificação foi decidida à pressa e atropelando - cilindrando - as pessoas da RDA, que perderam o seu país e ganharam um estatuto de alguma subalternidade na Alemanha reunificada, além de verem a sua economia a desmoronar-se, o desemprego a crescer, a desertificação crescente dos espaços. Se hoje tantos deles se viram para a AfD, é porque os partidos democráticos não souberam dar resposta adequada e atempada às angústias existenciais e ao compreensível ressentimento de grande parte dessas pessoas.
2. Não houve resposta adequada à crise do aquecimento global. A indústria automóvel continuou a produzir e a vender alegremente carros cada vez maiores e mais potentes, a produção de energia continuou a ser muito poluente, os políticos demoraram imenso tempo a ganhar coragem para se decidirem a acabar finalmente com as minas de carvão, faltaram as políticas e os apoios certos para as energias alternativas. O resultado é o que se vê - e as gerações mais jovens assustadíssimas com o futuro. Há jovens de 18 anos que não sabem o que estudar, e porque é que deviam fazer algum esforço para construir o seu futuro, porque temem que em menos de dez anos o mundo se transforme num caos completo no qual eles não saberão orientar-se para poder sobreviver, e menos ainda para poder viver. Um medo semelhante ao sentido pelos pais deles, quando tinham a mesma idade, em relação à ameaça nuclear durante a Guerra Fria.
3. Apesar da abertura crescente a cidadãos europeus, dos EUA e de alguns países asiáticos, continua a haver demasiada desconfiança e um repúdio subliminar (ou aberto) de pessoas com origens noutros países e noutras culturas, em particular se associadas a rendimentos mais baixos - e estes sentimentos têm sido capitalizados e artificialmente aumentados por partidos oportunistas de extrema-direita.
A última pergunta que me fizeram: o que diria eu ao presidente da República se pudesse falar com ele?
Sem nunca ter pensado nisso, respondi na entrevista que lhe agradeceria ter vindo à Alemanha dar mais visibilidade a Portugal, e lhe agradecia também - embora neste caso talvez me devesse dirigir antes ao governo - as ofertas repetidas para acolher refugiados dos barcos do Mediterrâneo. Sempre que há um barco impedido de atracar num porto europeu, Portugal disponibiliza-se para receber algumas dessas pessoas, e eu encho-me de alegria e orgulho por ver o meu país entre os muito poucos que ajudam a resolver o impasse. Gosto muito de ver Portugal a fazer boa figura na televisão ou nos jornais alemães. Finalmente, iria agradecer-lhe estar disponível para servir o país como político nestes tempos tão conturbados. Os problemas são enormes, urgentes e muito complexos, e os políticos estão cada vez mais desacreditados, triturados por uma máquina populista que promove os seus fantoches por meio de uma estratégia de respostas simplistas e soluções nacionalistas.
O que não disse, mas pensei: se pudesse falar com ele a sós, também lhe perguntava se estava arrependido de
ter criado as condições para haver um discurso populista no centro das
comemorações do 10 de Junho deste ano.
Só no dia seguinte me ocorreu a conversa que realmente gostaria de ter tido com ele: pedir-lhe que crie uma iniciativa de todos os presidentes europeus - ou até do mundo inteiro - para pressionar os governos, os agentes económicos e as populações para que sejamos todos capazes de agir com determinação e unidade na luta urgentíssima e extremamente complexa de inversão do processo de aquecimento global.
2 comentários:
Interessantíssimo, como tudo o que a Helena escreve. E volvidos todos estes anos, os alemães da ex-RDA (e descendentes) estão totalmente integrados, ou ainda se sentem desníveis? Em Portugal passou-se o mesmo com os portugueses regressados das ex-colónias - hoje, integradíssimos.
Para os que ficaram na região da RDA há inúmeros desníveis ainda, e a tendência é para se agravarem em parte. Os salários e os apoios sociais ainda não são iguais aos do Ocidente. A região está em processo de desertificação. Há pouco emprego para os residentes. Muitos pais de família trabalham na parte ocidental, e voltam ao fim-de-semana para estar com os seus. Outro problema de que já se tem falado bastante é que as mulheres jovens têm mais facilidade em partir para outros lugares em busca de emprego, mas muitos homens jovens ficam na terra onde nasceram - sem trabalho e sem companheira, muitos deles desenvolvem uma fúria surda que acaba por conduzi-los a contextos de extrema-direita.
Os que vão viver ou trabalhar na parte ocidental ainda têm uma certa tendência a disfarçar o seu dialecto e a sua origem.
E há um fenómeno estranho entre alguns dos nascidos depois da reunificação: estão a tomar para si as dores dos pais e sentem-se "roubados" desse país que deixou de existir antes de eles terem nascido.
Diferenças em relação ao caso português:
1. Na Alemanha, a vida na parte ocidental continuou sem grandes alterações, enquanto o mundo na parte oriental sofreu uma derrocada profunda. Um só país, mas realidades muitíssimo diferentes. Em Portugal, as pessoas foram obrigadas a partilhar os espaços e a vida quotidiana.
2. A antiga RDA foi "invadida" por "Wessis" com dinheiro que ficaram com o melhor do que havia. O bairro de Prenzlauer Berg em Berlim ou as casas apalaçadas de Potsdam são disso bom exemplo: os "Wessis" expulsaram os "Ossis" das suas próprias casas, dos seus bairros e, no caso de Potsdam, do acesso a certas partes das margens dos lagos.
3. Em Portugal pode dizer-se que os brancos estão integradíssimos, mas muitos negros ainda sofrem quotidianamente o efeito do racismo, de um modo como não acontece entre os alemães (uma vez que a diferença Ossi/Wessi não passa pela cor da pele).
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