04 junho 2019

"num Ferrari não entra poeira"

Só por achar pena este texto de Paulo Carvalho desaparecer na voragem do facebook, guardo-o aqui:


NUM FERRARI NÃO ENTRA POEIRA

«…como quando vamos a uma velocidade de cem à hora e vemos na berma da estrada um moralista empoeirado a protestar.»
O homem sem qualidades, Musil

É uma questão que qualquer pessoa criticamente insatisfeita com o curso das coisas, mais tarde ou mais cedo, tem de enfrentar: como evitar o moralismo sem cair no cinismo?
A insatisfação do moralista é acrítica, porque se funda num ideal herdado, muitas vezes divorciado da realidade. A satisfação do cínico, aos olhos do moralista, é perversa, mas radica, aos olhos do interessado, numa adaptação pragmática: «este pode não ser o melhor dos mundos, mas é nele que tenho que sobreviver».
– Num Ferrari não entra poeira, não é? – grita o moralista da berma.
– A culpa não é do pó, mas de quem se mete a jeito – pensa o cínico lá dentro.

Por isso, quando se encontram, a troca de palavras ocorre em dois circuitos fechados: o das convicções de um lado, o do status quo do outro.
O que assiste de fora, sendo insatisfeito, se não quer cair na dupla armadilha, terá de socorrer-se da serenidade.
Mas a serenidade de quem sorri soberanamente aos esquemas do pragmático não será cúmplice desses esquemas e, no fim de contas, fraqueza de um conservador consumado? Para que tal não aconteça, não é forçoso que tome posição? Ou poderá significar tal silêncio outra coisa: o estudo atento das estratégias do realismo cínico, para o desmontar ao nível da argumentação e, sobretudo, da acção. Mas como actuar com eficácia nesses campos, atingindo um ponto nevrálgico da máquina, sem cair precisamente na sua forma de funcionar?... que é nada mais, nada menos, do que a eficácia! Como introduzir uma falha a partir de fora em algo que está blindado a partir de dentro?
Esta era a questão de Kafka e de Bernardo Soares (ambos conhecedores íntimos da burocracia que oleia a máquina), esta foi também a razão de terem optado pela inacção. (Mas serão as «obras falhadas» de Kafka e Pessoa inacções ou, antes, sendo ruínas do monumental, as vias secretas de transformação, ou seja, vias da única verdadeira acção?) Mais recentemente, a análise aguda das engrenagens da Sociedade do Espectáculo ao serviço da máquina da Sociedade do Consumo levou Guy Debord a chegar à conclusão de que, uma vez que toda a voz se afoga no oceano de vozes e de imagens, já não vale a pena lutar contra a máquina: e suicidou-se. E como contestar o seu sinal? Não servem os interesses dos poderes instituídos mesmo os que radicalmente se fazem explodir ou põem bombas?
Quem escreve no Facebook estas coisas, deveria ter consciência da nulidade do que escreve, e calar-se. Escreve NO FACEBOOK, caramba!
E, contudo, talvez seja necessário manter a má consciência de um dizer inútil. Talvez não seja garantido que nos mantenhamos equidistantes entre a boa consciência do moralista e a boa consciência do cínico, pois também a má consciência resvala facilmente para a auto-satisfação. Mas sempre é possível saltar fora… ou esperar que, de fora, alguém ainda mais insatisfeito no-lo recorde. E mostre a fragilidade inerente a toda a boa intenção e linguagem...
Imagem: Obra de Anselm Kiefer


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