21 junho 2019

mais um episódio da série "a História em cada esquina"



Ontem fui à Komische Oper ver Petruschka de Strawinsky e L'enfant et les Sortilèges de Ravel, com encenação de Suzanne Andrade e Esme Appleton e animação de Paul Barritt. Antes de ir ao tema deste post, aviso já: isto seria um bom motivo para decidir a data de uma visita a Berlim (infelizmente não sei quando voltará a cartaz).

Quando esperava na fila para a bilheteira, onde queria comprar o bilhete mais barato (que esta deve ser a quinta ópera das últimas quatro semanas, e uma conta bancária não é de ferro), apareceu um senhor a vender o bilhete da esposa, que estava doente. Daí a nada estava sentada ao lado dele a meio da plateia, e ele a reclamar do sistema de pequenos écrans no encosto da cadeira da frente, para lermos o texto da ópera. Que na Deutsche Oper é muito melhor, porque projectam as frases para o espaço por cima do palco, não temos que andar com os olhos em pingue-pongue entre o palco e a cadeira da frente, dizia ele. E acrescentou: com Petruschka não tenho problema, porque falo fluentemente russo, mas o francês do Ravel é que é um sarilho.
- Russo?, perguntei eu. Cresceu na RDA?
Sim, crescera na RDA, e estudou tão bem russo que até o mandaram passar um ano em Moscovo a aprofundar os conhecimentos. Francês é que nem por isso, ao contrário de mim, que cresci em Portugal, e...
- Em Portugal?, interrompeu-me ele, muito empolgado. O meu cunhado viveu em Portugal! Esteve lá a construir o monumental órgão da Sé do Porto.

Alguma coisa não batia certo, porque lembro-me bem de o famoso órgão da Sé do Porto ter sido feito em 1985 por um organeiro bávaro. O meu vizinho de lugar explicou: o cunhado dele, irmão da sua mulher, fugiu da RDA dois dias antes de o muro ter sido construído. Deve ter pressentido o que se estava a preparar, e fez como todos faziam naquele tempo: entrou com a mulher no S-Bahn como quem vai ali tomar um café, com pouquíssimo dinheiro e sem qualquer objecto pessoal para não levantar suspeitas, de comboio atravessaram a fronteira berlinense, e de Berlim Ocidental voaram para o sul. Recomeçou a vida como afinador, e uma década mais tarde estava a comprar uma empresa de construção de órgãos em Regensburg. Nos 28 anos da existência do muro, os irmãos só se viram uma vez, quando ela conseguiu autorização para ir a uma festa importante da empresa de Regensburg. "Mas não me deixaram ir com ela, claro", acrescentou, "não fosse dar-se o caso de nós ficarmos também por lá."

Lembro-me do entusiasmo com que o Porto acolheu este organeiro bávaro em 1985. Olhávamos para ele como o portador de uma enorme experiência e tradição, uma eterna solidez alemã. Nunca me passou pela cabeça que podia ser uma pessoa com a vida atravessada por um terrível muro, um antes e um depois, as tantas saudades de tudo: a família e a terra do lado de lá, o dialecto berlinense, a culinária, os hábitos. Quanto sofrimento não terá passado pelos tubos daquele órgão do Porto!

Em 1995 Georg Jann passou a empresa de Regensburg para o seu segundo filho, e instalou-se em Portugal. Dez anos mais tarde entregou a empresa portuguesa ao seu filho mais velho, e foi pra o Brasil, onde construiu alguns órgãos (entre os quais o do Mosteiro de S. Bento em Vinhedo, quando já tinha 77 anos). Morreu em Fevereiro passado.




4 comentários:

ematejoca disse...

Céus, outra excelente postagem, que também tem a ver comigo, ao escrever sobre o órgão da Sé, da minha cidade invicta.

Vi essas duas óperas com essa fantástica encenação, aqui em Düsseldorf 🏵

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Extraordinário!
Há coisas mesmo curiosas.
E é fascinante aquilo que às vezes se descobre quando falamos ocasional e desinteressadamente com pessoas desconhecidas.
Num Verão passado, descobrimos que um simpático turista alemão que jantava sozinho na mesa ao nosso lado, algures em Vila Nova de Milfontes, era afinal um Violoncelista da Filarmónica de Berlim...
Mais recentemente, há cerca de um ano, aqui em Lisboa, também ao jantar, um casal alemão (aprox. da minha idade) meteu conversa connosco, sentados atrás de nós numa esplanada, e de repente ele descobriu que eu tinha cantado uma Missa de Puccini (sim, a Missa de Glória) que ele uma vez também cantara, já há muitos anos, e que nunca mais conseguira encontrar ninguém que conhecesse essa obra, que tanto o fascinara, de modos que em menos de nada estávamos ali os dois a cantar, no meio da esplanada, um dos trechos mais bonitos (Qui Tollis Peccata Mundi) e ele encantado a gravar tudo e a reviver os seus tempos de coralista amador!
E passadas algumas semanas (entretanto disse-me até que tinha sido Avô!) depois de regressar a casa (perto de Estugarda), recebo o dito vídeo, já todo editado e legendado! Uma beleza.
Tudo isto à conta da Música -- e da maravilhosa capacidade de as pessoas se entenderem e dialogarem...

Helena Araújo disse...

Estou mesmo a ver: conversa puxa conversa, ah, Berlim, conhecemos muito bem, até fomos nós quem deitou fogo ao telhado... e ele logo: ah, malandros! Eu tinha lá o meu violoncelo!... e vocês: ai, é um dos músicos? desculpe, foi sem querer!
;)

Helena Araújo disse...

E entretanto, ontem almocei com a filha do fotógrafo que fez a cobertura da época em que o Mário Soares recebeu apoio do SPD para criar o PS. Diz que tem imensas fotos inéditas em casa.