Os adultos estavam a observar, a escrever um documento muito ponderado sobre o que está em causa, e a recolher assinaturas antes de o publicar. Ei-los, num texto excelente. E sei que serão bem mais do que estes 71 mas, devido à interrupção da Queima, recolher ainda mais apoios atrasaria a resposta, que se queria imediata.
Alcoholocausto – memória e responsabilidade
7 de Maio 2019A utilização da palavra “Alcoholocausto”, no cortejo da Queima das Fitas de 2019, pelo carro dos alunos fitados de História não veio a concretizar-se, após acordo com a Direcção da Faculdade de Letras. Aparentemente, no entanto, os/as responsáveis mantiveram-se convictos/as da justeza da sua opção inicial, uma vez que afixaram no carro alusões a uma “censura” e à existência de uma “polícia académica”, apresentando-se alguns/mas participantes com uma mordaça. Também o panfleto distribuído a lembrar o dia 27 de Janeiro como dia da memória do Holocausto faz alusão a um extermínio “com o intuito de desembaraçar a sociedade alemã e a Europa de inúmeras comunidades sociais”, formulação que ou revela profunda ignorância ou denuncia uma total indisponibilidade para referir com rigor os factos históricos.
Apesar da não afixação no carro do nome inicialmente escolhido, este caso não pode passar sob silêncio e, muito menos, pode ser encarado como um simples episódio sem relevância. Importa, assim, clarificar o seguinte:
“Holocausto” é uma palavra que remete, sem subterfúgios, para o maior crime contra a humanidade alguma vez cometido, o extermínio genocida de mais de seis milhões de judeus, ciganos e outros grupos pelo regime nacional-socialista. Este genocídio fez-se em nome de uma ideologia racista e foi planificado e organizado de forma minuciosa e eficiente por uma máquina implacável posta em movimento por toda a Europa sob o domínio nazi. Não pode nunca perder-se de vista que, por detrás da generalidade do conceito, estão homens, mulheres e crianças inocentes, vidas que, criminosamente, não puderam ser vividas. É a enormidade do crime e a lembrança concreta dessas vidas não vividas que nos impõe aquilo a que Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, chamou o dever da memória. Este dever é imprescritível, isto é, não caduca, por maior que vá sendo a distância temporal. No caso vertente, a incorporação do símbolo de um comboio no grafismo utilizado pelos fitados de História não deixa a mínima dúvida sobre a intencionalidade da alusão contida no nome do carro – os vagões de gado que atravessaram toda a Europa transportando, em condições infra-humanas, as vítimas destinadas ao extermínio são um dos símbolos mais poderosos do genocídio. Estamos, pois, perante uma violação grosseira do dever de memória e perante uma ofensa gravíssima à memória das vítimas.
Contrariamente ao que alegam os/as organizadores/as do carro, há limites para a liberdade de expressão, assim, como há limites para o uso da sátira e do humor. Limites que estão consignados na lei, mas que, antes de serem de ordem jurídica, radicam num conceito elementar de responsabilidade ética individual. O mais óbvio desses limites atinge-se quando estão a ser feridos direitos que pertencem legitimamente a outros. Nem tudo pode ser objecto de sátira: para além dos critérios óbvios do bom gosto, a sátira constitui um modo de discurso que carece sempre de uma legitimação ética. É lícito e desejável transformar uma pessoa ou uma instituição em objecto de riso quando se trata de defender valores substanciais através da denúncia de actos censuráveis praticados por essas pessoas ou instituições. Não é lícito fazê-lo quando a forma da crítica passa inteiramente ao lado do que se pretendia criticar e viola gratuitamente a dignidade humana. Neste caso, a dignidade humana de vítimas para sempre silenciadas. Quem assim procede torna-se, implicitamente, cúmplice dos crimes cometidos e não poderá, em nenhuma circunstância, furtar-se a esta responsabilidade. E muito menos poderá, quando confrontado com a indignidade da sua posição, arrogar-se a posição de vítima de um qualquer ato de “censura”.
A situação criada é ainda agravada pelo facto de, presentemente, circularem com insistência em todo o mundo teses negacionistas, rejeitando a própria existência histórica do Holocausto. É particularmente grave que sejam estudantes universitários de História a colaborar numa lógica de banalização que os aproxima, objectivamente, do negacionismo.
Os/as abaixo-assinados/as, docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sentem-se profundamente envergonhados e amargurados pela imagem que, com a sua ignominiosa escolha inicial, o grupo de promotores do carro “Alcoholocausto” projectou de si próprio, nos órgãos de comunicação e em outras redes em que defendeu o seu projecto, enquanto grupo de finalistas do curso de História, implicando, ao mesmo tempo, a Faculdade e a Universidade a que pertence. Mas, mais do que isso, entendem ser seu imperativo de consciência, em nome do princípio fundamental de humanidade imposto pela memória das vítimas, trazer a público uma firme posição de inteiro repúdio e total rejeição.
Coimbra, 7 de Maio de 2019
Adriana Bebiano
Ana Cristina Araújo
Ana Paula Arnaut
Anabela Fernandes
António Campar
António Manuel Rebelo
António Sousa Ribeiro
Carlos Ascenso André
Carlos Reis
Carmen Soares
Catarina Caldeira Martins
Clara Keating
Claudete Oliveira Moreira
Claudia Ascher
Conceição Carapinha
Cornelia Plag
Cristina Robalo Cordeiro
Diogo Ferrer
Domingos Jesus da Cruz
Fátima Velez de Castro
Fernando Matos de Oliveira
Frederico Lourenço
Graça Capinha
Inês Amaral
Isabel Paiva
Isabel Pereira
Isabel Santos
Jacinta Matos
Jens Liebich
Joana Antunes
João Domingues
João Figueiredo
João Gouveia Monteiro
João Maria André
João Muralha
João Nuno Corrêa-Cardoso
John Havelda
José Luís Brandão
Judite Carecho
Katharina Baab
Luca Antonio Dimuccio
Lúcio Cunha
M. Conceição Lopes
Manuel Portela
Margarida Miranda
Maria Beatriz Marques
Maria de Fátima Gil
Maria do Céu Fialho
Maria Isabel Caldeira
Maria João Silveirinha
Maria João Simões
Maria José Canelo
Maria Luísa Portocarrero
Marta Anacleto
Norberto Santos
Paula Barata Dias
Paula Santana
Paulo Nossa
Paulo Silva Pereira
Pires Laranjeira
Raquel Vilaça
Rita Marnoto
Rogério Paulo Madeira
Rosário Ferreira
Rosário Neto Mariano
Rui Bebiano
Rui Ferreira
Rui Manuel Afonso Mateus
Rui Pereira
Rute Soares
Sara Sousa
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