23 fevereiro 2019

Berlinale 2019 - sexto dia


 
 

O sexto dia começou lindíssimo. E ficou ainda melhor logo a seguir, por causa de um elogio no balcão dos bilhetes. O funcionário pegou na minha folha para ler os códigos de barras, e ficou pasmado a olhar. "Isto é que é uma folha organizada!", comentou, sem conseguir tirar os olhos dela: círculos, duas cruzes, uma cruz, plano B caso já não houvesse bilhetes para os filmes que queria ver. Ri-me, agradeci, agarrei nos bilhetes e fui à minha vida, perguntando-me como será a organização dos outros para ele ficar tão admirado com a minha.



Nesse dia resolvi conceder-me um intervalinho nos filmes sérios: fui à Haus der Kulturen der Welt ver as curtas para crianças. É sempre um prazer ver aquela casa cheia de miúdos de palmo e meio, sentir o alvoroço deles antes de começar o filme: passarinhos na Berlinale.

Mas antes disso fui espreitar a sessão para jornalistas de um dos filmes do concurso. Estava sem paciência para aquele tipo de filme, de modo que saí ao fim de meia hora. Azar o meu: foi o que ganhou o urso de prata para a realização. 



No segundo filme do dia encontrei uma colega do coro. Estava mesmo à minha frente. Lá está: uma cidade de quase quatro milhões de habitantes, um festival de cinema com 400 filmes, e eu passo a vida a tropeçar em conhecidos. No fim do filme fui almoçar com ela à Escola de Cinema - poucos sabem que há uma cafetaria no topo do Sony Center, onde se podem comer refeições tipo cantina por um preço relativamente aceitável - e mostrei-lhe também a Audi Lounge. Carregámos os telemóveis nos carregadores que eles lá têm, e assistimos à conversa que estava a decorrer com o realizador de "Brecht". Pareceu-me que havia um sem-abrigo no público. É por estas e por outras que gosto de Berlim: tem espaço para todos.

Quando estávamos a tomar café na Audi Lounge apareceu outra conhecida minha das filas da Filarmonia. Lá está: uma cidade com quatro milhões de habitantes...
Avisei-a - e aviso aqui também, a quem interessar possa - que no dia 16 de Março o Rattle volta à Filarmonia com a Paixão segundo São Mateus encenada pelo Peter Sellars. Aconselhei-a a telefonar uma semana antes para saber se vão vender lugares no palco, e a ir para a fila da caixa duas horas de os porem à venda. Assistir àquela encenação com aqueles músicos sentada no palco foi um dos momentos mais sublimes que me aconteceu na Filarmonia.

Os filmes do sexto dia:



Flatland, de Jenna Bass. Podia ser um grande filme, mas as personagens são demasiado unidimensionais, caricaturais ou inconsistentes.



Trailer 2' _WHEN TOMATOES MET WAGNER from Marianna Economou on Vimeo.


When tomatoes met Wagner, de Marianna Economou. Um documentário que passou na secção Cinema Culinário, sobre uma aldeia grega com uns trinta habitantes onde há grandes plantações de tomate biológico para preparar refeições gourmet em conserva, que serão depois exportadas para todo o mundo. O chefe da empresa é um poeta, podem crer: escolhe cuidadosamente a música que dá aos tomates (se bem me lembro, decidiu-se por uma peça de Vivaldi que ele dizia ser vermelha, mais indicada para eles ganharem boa cor), e serve-lhes Wagner em colunas potentes espalhadas pelo campo. Para a época da colheita prefere música tradicional grega, para os tomates sentirem a dor da partida e da ausência. Quando exporta para os EUA afirma que está a devolver os tomates à proveniência, fechando um ciclo de quinhentos anos. E quando, no debate após o filme, lhe perguntaram como equacionava o lucro, porque no filme não se ficava com a sensação de que fosse um negócio muito rentável, ele respondeu com estes versos de um poeta grego (cujo nome não entendi):
Se as minhas pálpebras fossem transparentes
De olhos abertos via a realidade
Fechando-os, via os meus sonhos.



Fordlandia Malaise - Trailer from Kintop on Vimeo.


Fordlandia Malaise, de Susana Sousa Dias. Documentário sobre uma cidade artificial projectada por Ford na Amazónia, sobre a força da Natureza e a resiliência dos humanos. Um trabalho bem articulado e com equilíbrio dos vários registos narrativos, juntando imagens históricas à realidade actual, tradição (ou invenção?) oral e testemunhos da população actual. Gostei em particular da maneira hábil de transformar fotografias históricas numa narrativa cheia de ritmo.

Mai i te kei o te waka ki te ihu o te waka, de eremy Leatinu'u.  
The Mermaids, or Aiden in Wonderland, de Karrabing Film Collective.  




Chão, de Camila Freitas. Documentário sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Filmado ao longo de quatro anos, documenta os sonhos, as alegrias, as necessidades e os reveses na luta destas pessoas. As cenas iniciais - que mostram dois amigos a fazer projectos sobre o que vão plantar quando tiverem um talhão deles - provocam em nós um sorriso de empatia. Mas à medida que o filme avança, o sentimento de opressão e injustiça torna-se sufocante. Sabemos o que Bolsonaro propõe para aquelas terras e para aquelas pessoas. O futuro deles está cada vez mais longe desse pequeno talhão de terra com diversas árvores de fruto, o milho aqui, as batatas acolá e tudo o mais que sonharam um dia.

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