06 fevereiro 2019

a ilusão dos referendos

O Luís Aguiar-Conraria escreveu no Público um texto com o título "Brexit, uma excentricidade da democracia directa?", no qual se manifesta defensor de referendos como uma maneira de melhorar a Democracia e a tomada de decisões políticas.

Não concordo com quase nada na sua argumentação, e aproveito o seu texto para escrever o que há muito queria dizer contra os referendos. A saber:

1. "Não sou dos que contestam a legitimidade de um segundo referendo. Neste momento, são bem mais claras as implicações de uma saída da União. Eleitores com mais informação poderão querer alterar o seu voto. (...) A ideia de que tem de se estar agarrado ao resultado de um referendo para sempre é absurda. Em cada legislatura, o que não faltam são leis a reverter decisões anteriores. Num dado momento, qualquer maioria é conjuntural e não é democrático eternizá-la."

Um segundo referendo viria confirmar o dichote de que na UE se vão fazendo referendos até o povo decidir como Bruxelas quer. E quem diz Bruxelas poderia muito em breve começar a dizer Bannon ou Putin. Queremos realmente dar mais passos na direcção de repetir referendos até estar instalado o caos que os inimigos das Democracias ocidentais desejam? Que regularidade democrática é possível num sistema que aceita que se faça um segundo referendo quando houver um nível crítico de protestos contra o resultado do primeiro? E quais são as implicações da assunção "eleitores com mais informação"? Significará isso que da primeira vez os eleitores não estavam capazmente informados? Quer dizer: é possível que decisões importantíssimas para um país sejam tomadas com base nos votos de eleitores mal informados? Mais: devemos aceitar a possibilidade de questões vitais de um país serem decididas em referendos que decorrem num contexto de mentira e ilusão?

[Esta última questão resolvia-se facilmente: mal fosse revelado que algum dos argumentos usados pela posição vitoriosa era mentira ou ilusão, o referendo perdia a sua validade.]

2. "Os políticos são pessoas e, naturalmente, têm os seus interesses. Isso tem consequências. Por exemplo, será difícil esperar que um parlamento pejado de advogados, muitos dos quais associados a grandes sociedades, legisle contra os seus interesses. Enquanto assim se mantiver, nenhuma reforma da justiça será feita em nome do interesse do povo. A não ser, claro, que o interesse do povo coincida com o das sociedades de advogados. Ao longo de décadas, também pudemos ver como muitos vão directamente de grandes empresas, de bancos e de seguradoras para os governos. Salvo algumas excepções, não actuarão contra os seus interesses. É humanamente inevitável.
A ideia de que se faz política de acordo com os interesses do povo é uma ficção apenas contrariada pela necessidade de conseguir votos para ganhar eleições. É por isso que a democracia directa deve ser uma aliada da democracia representativa."

Isto seria o autêntico "deitar fora o bebé e ficar com a água do banho". Se os políticos decidem em função dos seus próprios interesses, têm de ser julgados por isso. Se sabemos que há tendência para isso acontecer, temos de criar instrumentos para o evitar. O problema da porta giratória entre o governo ou o parlamento e as direcções das empresas não se resolve com a substituição crescente da decisão dos políticos pela decisão do povo em referendos, mas com o controle da acção de cada político e a punição dos abusos. Um exemplo recente, na Alemanha: quando se deram conta de que o FDP estava a fazer política para a sua clientela, os eleitores castigaram-no duramente. Durante uma legislatura, o FDP - que é o partido alemão com mais tempo de participação em governos - esteve ausente do Parlamento federal. É assim que se corrige o comportamento dos partidos, mais que pela via dos referendos.

3. "estudos que mostram que, nos Estados com menos entraves à democracia directa, as políticas públicas estão mais alinhadas com as preferências dos cidadãos."

Mesmo que no passado, e em determinadas condições, os referendos possam ter sido um meio de aproximar política e eleitores, hoje sabemos que o risco de os eleitores serem manipulados por interesses obscuros é cada vez maior, e constitui uma enorme ameaça ao funcionamento das Democracias. Depois do que já foi revelado sobre o Facebook e a Cambridge Analytica, ou sobre o papel do WhatsApp na eleição do Bolsonaro, como é possível acreditar na bondade dos referendos para tomar decisões políticas?

4. "Outro argumento é o de que há assuntos demasiado complexos para o cidadão comum. Este argumento falha o alvo. A experiência mostra que os deputados é que não têm capacidade para legislar mesmo sobre as coisas mais simples. Ainda que admita que, individualmente, há deputados excelentes, as decisões do colectivo são, muitas vezes, irracionais."

O exemplo é pouco adequado, porque não há qualquer possibilidade de um referendo se substituir ao trabalho do legislador em questões que se resolvem, como o próprio Luís reconhece, ou com a solução X, ou com a solução Y, ou com uma combinação de X e Y, e que têm, "dentro de cada uma destas formas, uma miríade de políticas possíveis". Além disso, nada indica que pessoas que têm a sua vida, os seus afazeres e os seus condicionamentos intelectuais e de informação estariam em melhor posição que os políticos para resolver questões que, pelos vistos, até para estes (com todos os seus assessores e estudos) são demasiado complexas.
Convém ainda considerar que, perante uma questão altamente complexa, o mais certo seria cada eleitor escolher aquilo que mais lhe convém pessoalmente (caso fosse capaz de tanto discernimento). Ora, só os liberais mais fundamentalistas acreditam ainda que o somatório das decisões de agentes movidos pelo seu interesse egoísta permite a optimização da situação global.
Concretizando um pouco mais as dificuldades, e usando o mesmo exemplo: qual devia ser a pergunta feita em referendo (de resposta: sim ou não) para ouvir a opinião do povo sobre o que fazer para travar a subida das rendas? Mais: que garantia temos de que a resposta dada (caso alguém conseguisse imaginar a pergunta certa a fazer) seria a mais adequada para resolver o problema?
Estas questões lembram-me uma conversa que tive há dias com uma mulher atacada por um cancro extremamente agressivo. Ela queixava-se que os médicos não lhe diziam qual era a melhor decisão a tomar. Ora bem: se uma pessoa - apesar de falar com vários especialistas e ler imenso sobre o assunto - não está em condições de decidir sobre uma questão que é literalmente de vida ou de morte para ela, porque haveria de estar em melhores condições para decidir atiladamente sobre questões muito complexas para o país?

5. "Evidentemente que uma decisão tomada em referendo que a tantos parece louca, como a decisão de sair da União Europeia, não deixaria de ser aproveitada pelos detractores dos referendos."

O que parece louco não é a decisão de sair da União Europeia, mas o modo como o referendo foi criado e conduzido. Pouco teria a criticar, se:
- O referendo só fosse vinculativo com a participação de pelo menos 75% dos eleitores e a uma margem de mais de 60%, e se os cidadãos residentes há mais de 15 anos no restante território da UE pudessem votar;
- Estivesse assegurada a protecção efectiva contra os efeitos perniciosos da manipulação das redes sociais, bem como contra a demagogia e a mentira nos argumentos políticos;
- A pergunta do referendo esclarecesse sem margem para dúvidas sobre o que estava em causa:
"Quer permanecer na UE e para isso está disposto/a a abdicar cada vez mais da independência da política nacional, a contribuir com quantias exorbitantes para as despesas da União, a entrar no Euro, a aceitar que qualquer cidadão da UE se possa instalar no território do Reino Unido, etc.?
Ou prefere sair da UE e para isso está disposto/a a aceitar a reinstalação de uma fronteira na Irlanda e o risco de regresso à situação de guerra civil, a reabertura do contencioso de Gibraltar, o regresso forçado imediato dos seus concidadãos que estão a estudar ou trabalhar nos outros países da UE, a expulsão imediata de todos os cidadãos da UE que aqui residem e trabalham, os valores de aumento previstos para o desemprego (x%) e a inflação (y%), a saída em massa de empresas, a saída em massa de profissionais estrangeiros altamente qualificados, em especial no sistema de saúde, a exclusão de um dos espaços de livre comércio maiores e mais ricos do mundo, a dificuldade em importar produtos frescos do sul em tempo útil, a retirada das nossas empresas das cadeias de produção multinacional do espaço europeu, etc.?"

Antes de terminar, quero sublinhar mais uma vez que é impossível falar em referendos, ou sequer eleições, sem ter em conta as mudanças brutais do nosso tempo: Cambridge Analytica, Steve Bannon, fake news, redes sociais. Qualquer proposta para melhorar o funcionamento das sociedades democráticas no futuro tem de equacionar estes novos condicionamentos.

Quanto à conclusão final do texto do Luís, que afirma "tratar este resultado, o “Brexit”, como uma excentricidade apenas possível por referendo é pouco avisado": inteiramente de acordo. Há muito que o Reino Unido ia fazendo a sua terceira via entre o "não" e o "sim", e começava a ser tempo de tomar uma decisão para um dos lados. O que é inadmissível são as circunstâncias em que essa decisão foi tomada.

ADENDA: Recomendo a leitura deste artigo de George Schöpflin: Referendum - populism versus democracy.



1 comentário:

Lucy disse...

Alegra-me ver que a vesícula não te faz falta nenhuma ao cérebro!