19 dezembro 2018
"Xerxes" (3)
7. Post de Lutz Brückelmann:
A maioria de nós deve conhecer Xerxes das aulas da história. Era o imperador persa que foi derrotado pelos gregos nas batalhas de Salamina, 480 a.C. e Plateia, 479 a.C.
Se os gregos não tivessem ganho essas batalhas, hoje o mundo estaria muito diferente. Não havia ciência, filosofia, democracia. Ainda viviamos na obscuridade do despotismo oriental. Aliás, isto quase é uma tripla tautologia: obscuridade, despotismo e oriental. Tal como os seus opostos: luz, liberdade e ocidente. É essa a nossa ideia comum que estou a caricaturar, mas só um bocadinho.
O mito de que a liberdade e a democracia foram salvos pelos heróis da batalha de Salamina, tem a sua origem na própria Atenas desta época e atravessou os tempos, tendo encontrado promotores entusiastas nos inteletuais e artistas amantes da época clássica até aos nossos dias. Mas os factos históricos hoje disponíveis mostram-nos que não é bem assim. É mesmo um mito.
É verdade que às Guerras Persas (a primeira houve em 479, quando Atenas em Maratona resistiu a uma expedição punitiva do antecessor de Xerxes, Dário) se segue a época áurea da cultura grega, da sua democracia, da construção do Acrópole, de Péricles e Sófocles, Sócrates e Platão, até ela se afundou na guerra civil, entre Atenas e Esparta, seguido pelo vendaval que era Alexandre, e da ocupação romana. Mas tal como a cultura grega continuava a dar frutos quando já tinha sucumbido ao império romano, tal a cultura grega já antes da invasão de Xerxes floria, e muitos dos seus protagonistas viviam no império persa, e as suas grandes descobertas foram feitas em cidades gregas sob a sua administração. Era o caso, por exemplo, com Tales de Mileto, 624-548a.C., Anaxímandro de Mileto, 610-547a.C., Pitágoras de Samos, 570-510a.C., e Heraklito de Éfeso, 520-460a.C.
Como era possível tanta ciênca e cultura sob o despotismo oriental? Pois bem. É certo que a Pérsia era um império cuja existência, como de todos os impérios, dependia da subjugação e exploração dos territórios subjugados. Mas para um império do seu tempo, a Pérsia e de Xerxes era extraordinariamente moderno, culto, tolerante e bem-gerido. Havia o poder central, com a capital Persepolis, uma cidade fundada para o efeito e que estava repleta de arquitetura monumental, com a sua burocracia empenhada em administrar de forma racional e de preferência pacífica um território em que viviam 44% da população mundial, e havia os povos subjugados, que eram governados por „Sátrapas“, governadores aos quais cabia a cobrança dos impostos e, em caso de guerra, a mobilização de homens para as tropas. Quando for considerado oportuno, estes sátrapas podiam ser tiranos, como foi o caso em Mileto. Mas na maior parte, deixava-se às províncias bastante autonomia, incluindo a religiosa. Impostos foram cobrados com moderação, pois a administração estava ciente de que era preciso não matar a galinha que punha os ovos. Aconteceu que nas cidades da Iónia, ou seja nas ricas cidades portuárias gregas na costa oeste da Ásia Menor, as galinhas achavam que deviam ficar elas próprias com os seus ovos, apostando na ajuda dos seus primos na Grécia europeia. Isto Xerxes entendeu não poder tolerar. Como é sabido, a invasão lhe correu mal. Felizmente para nós. Provavelmente. Ou não. Uma coisa é certa. De bárbaro e obscuro, o império persa tinha muito menos do que aquele que o derrubou 150 anos mais tarde. Que era o grego de Alexandre.
Adenda:
Não fiquei completamente a vontade com o que escrevi ontem. É sempre problemático condensar em 500 palavras uma apreciação dum acontecimento histórico de relevância mundial. Mais ainda quando se acrescenta ao arrojo, como no meu caso, uma falta grande de conhecimento consolidado da matéria e de tempo de estudo e reflexão. Mas, costumo desculpar-me: a EI não é nem pode ser um lugar de rigor científico, nem sequer tem os mecanismos de controlo de qualidade - falíveis - da Wikipédia. Sé uma entrada serve para enunciar um aspeto ou uma ideia e assim convida o leitor para uma investigação mais aprofundada, já acho que alcançou ou que se pode esperar dela.
Assim, o que quero acrescentar neste post scriptum não vai sanar as fragilidades do post em cima, é antes um reconhecimento das mesmas, ao que contudo quero acrescentar umas palavras sobre o que nele me intriga mais:
Se Xerxes teria ganho a campanha de 479 e subjugado a Grécia europeia, o que teria sido o destino da civilização humana? - A resposta é fácil e impõe-se: Não sabemos!
Mas não negando isso, ocorreram-me algumas ideias muito especulativas: Quase de certeza não teríamos tido a época áurea da cultura grega, A vida de Sócrates teria sido tão diferente, o que Platão teria escrito não seria a obra que lhe conhecemos, se teria escrito de todo, o mesmo vale para Aristóteles e, de seguida, o que teria escrito S. Paulo, Agostinho, Aquino, Roger Bacon, Descartes, Kant, Montesquieu, Jefferson etc. ou seja, toda a historia da filosofia ocidental teria sido outra. Ou seja, ficamos sem cristianismo (pelo menos sem como o conhecemos: um derivado do judaísmo fertilizado pelo pensamento grego), sem humanismo, sem iluminismo, sem ciência moderna. Alto aí. Admitir que todas as grandes figuras do pensamento ocidental certamente não teriam tido ocasião de pensar e escrever o que pensaram e escreveram, não é a mesma coisa como dizer que nada comparável teria sido pensado e escrito por estes ou outros.
Como a história das ideias durante o reino persa comprova, este não tinha como caraterística de asfixiar qualquer pensamento e progresso intelectual. Assim, também não seria de presumir que no futuro teria tido na Grécia ocupada. E é de notar que o pensamento humanista e democrático sobreviveu muitos regimes e impérios posteriores ao persa, mais repressivos e obscurantistas. A ideia da democracia data pelo menos do tempo de Solon, de 600a.C., ou seja muito antes da época áurea do século V, e mesmo se não teria havido no tempo mais próximo sob a ocupação persa possibilidade de a experimentar na prática, ela não teria desaparecido por isso.
Aliás, parece-me redutor imaginar a história de ideias assim: Em determinada altura um génio tem uma ideia, e depois esta faz o seu caminho atravessando os tempos, se não ela ou todos os seu portadores forem extintos pela força.
É consensual que não era por acaso que essa ideia nasceu num ambiente de cidades de mercadores, num universo propício para facultar experiências ausentes noutras circunstâncias mais constrangedoras: o confronto com modos de vida e e pensar diferentes, a necessidade de negociação, ou seja de mediação de interesses, e a prosperidade, que faculta tempo a pessoas de se ocupar com questões que ultrapassam as questões de sobrevivência e da consolidação do poder.
Este ambiente cultural estava existente na Grécia antiga, e mesmo se este tivesse extinguido definitivamente pela ocupação persa - não é para mim nada óbvio que isso teria mesmo acontecido porque não teria estado no seu interesse (económico, pelo menos), é um ambiente que volta a surgir onde há comercio e cidades que com eles prosperam. Historicamente, isto aconteceu com resultados „democratizantes“ quer nas cidades da Hansa, na norte da Europa medieval, e mais acentuadamente nas cidades da norte da Itália, no Renascimento.
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2 comentários:
Penso que a História é em grande medida contingência e tivesse a Grécia sido conquistada pelos persas, o mundo hoje seria seguramente muito diferente.
Poderia até ser melhor, mas se Sócrates ou Aristóteles ou Jesus de Nazaré não tivessem existido, muito dificilmente outros poderiam ter preenchido o seu lugar, sobretudo ao tempo de cada um, o que foi crucial para o que se passou depois.
Como é bem conhecido, a expedição científica do Senhor de Lapérouse, durante o reinado de Louis XVI, terminou com o naufrágio dos seus dois navios e com a perda de toda a tripulação (julgo que um pequeno número de homens sobreviveu, mas nunca foi resgatado).
Felizmente, o relatório científico de grande parte da viagem foi cedido a navegadores britânicos numa escala anterior dos dois navios, que o trouxeram para a Europa (as relações entre o Reino Unido e o Reino de França eram boas na época).
O que é talvez menos conhecido é que um jovem de 16 anos, de seu nome Napoleão Bonaparte, foi incluído na lista preliminar dos tripulantes mas não na lista final e por isso não fez a viagem...
Teria o mundo sido melhor sem ele? Se calhar sim. Ou não...
Esta adenda do Lutz poupou-me o trabalho de criticar o texto que ele tinha publicado previamente. Acho que agora ficou tudo mais composto. Mesmo assim sublinho dois aspectos:
1) a História é a visão que o presente tem sobre o passado que neste sentido tem sempre alguma imprevisibilidade, mesmo fora dos regimes totalitários dos quais se começou a dizer que neles o passado era imprevisível;
2) vou ficando cada vez com menos paciência para conjecturar sobre como seria o presente se o passado tivesse sido diferente e cada vez mais me apetece usar a frase: "se a minha avó tivesse rodas seria um automóvel"!
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