10 novembro 2018

o meu 9 de Novembro de 2018


Ontem era o centenário da instauração da república na Alemanha, mas não ouvi falar disso, nem dos 29 anos da queda do muro - excepto no noticiário, onde mostraram partes da cerimónia no Parlamento. À minha volta, o tema do dia era a provocação descarada de um grupo de extrema-direita, que marcou para os oitenta anos do terrível pogrom nazi uma "marcha fúnebre pelas vítimas da política".

De modo que fomos para a rua: vários milhares de berlinenses de um lado, 140 do outro, e 1200 polícias entre os dois grupos. Estive apenas com a Christina, porque o Matthias e os seus amigos estavam numa manifestação que vinha de outro lado da cidade.

Antes disso fomos a uma cerimónia junto ao memorial da Levetzowstrasse, onde deram a palavra a Marian Kalwary, sobrevivente do gueto de Varsóvia, e a Horst Selbiger, berlinense e filho de um judeu, nascido em 1928.

Marian Kalwary, de 89 anos, pôs toda a gente a rir ao recusar uma cadeira dizendo que isso "é para gente nova!".


 

Depois leu com dificuldade o texto alemão que lembrava o que aconteceu há oitenta anos na Europa, e fez um pedido na qualidade de sobrevivente do gueto: vim de Varsóvia a Berlim urgir-vos para não esmorecerem na luta, e para não esquecerem nunca.

Horst Selbiger, numa voz muito clara, falou-nos do que viu naqueles terríveis dias.
E sublinhou: "Quem dorme em Democracia acorda em ditadura. Fascismo não é uma opinião, fascismo é um crime!"


Também respondeu à questão de que falei ontem, sobre o 9 de Novembro ser a melhor data para um feriado alemão, por agregar a maior vergonha e a maior glória.

"Não!", disse ele. "Ouço dizer que hoje em dia é possível combinar este dia da vergonha e da culpa com um feriado festivo. E assim deixam que se comemore no dia 9 de Novembro a unidade alemã. E assim se deixa cair no esquecimento a data da vergonha e da culpa. Se nós o permitíssemos! Erguei-vos!  Oponham-se a essas pessoas da extrema-direita! Ainda somos a maioria, e devemos aproveitá-la! E, por favor, não digam nunca mais "tem de ser possível encerrar este capítulo". É isto que vos digo: não podemos, e não o faremos. Não há esquecimento, não há perdão, e temos de pôr fim, de uma vez por todas, a esta transformação dos criminosos em vítimas."



As pessoas apinhadas na praça ouviam-nos em silêncio atento.


A seguir, uma banda cantou algumas músicas (entre outras: Donna donna donna, Ich wandere durch Theresienstadt, Bella Ciao - nesta, a primeira estrofe foi cantada em ritmo mais lento, mais ao estilo da música judaica) e eu fui comprar o livro do Horst Selbiger, que por acaso estava junto à mesa, e mo autografou - "para memória do 9 de Novembro de 2018" - por baixo da frase:

Façam-nos perguntas, nós somos os que restam!
Quando deixarmos de existir, só ficará a História em papel
.

Pusemo-nos a caminho. Largas centenas de pessoas, rodeadas por muitos polícias, alguns deles com câmaras de filmar. A Christina a ensinar-me os truques ("não vás demasiado à frente, se as coisas correrem mal é lá que complica primeiro" e "fica atenta ao pessoal todo de preto"), eu a dizer que achava mal as palavras de ordem tipo "nunca mais Alemanha!", ela a comentar que sentia um certo desconforto ao ver as bandeiras de Israel naquelas ruas de Moabit, que é um bairro onde moram muitos muçulmanos, eu a responder que as pessoas daquela manifestação também vão para a rua em defesa dos direitos dos muçulmanos. E perto de nós o carro de som, que avançava empurrado por alguns manifestantes, a passar a gravação da mensagem "nunca mais! para estes crimes, não há esquecimento e não há perdão" em várias línguas: alemão, hebraico, farsi, árabe.

Passámos por um prédio onde havia um homem à janela, junto a uma bandeira da Alemanha, que nos berrava insultos. O pessoal respondia em coro. E a polícia filmava, para verificar depois se estes tumultos ainda estavam dentro da ordem constitucional.

O cortejo parou junto à estação central de caminho-de-ferro, na barreira que a polícia tinha preparado para separar os manifestantes. Tudo tranquilo - excepto alguns turistas aflitos para apanhar o comboio. Deixei a Christina, e fui para a Filarmonia, para assistir a um concerto em memória das vítimas do 9 de Novembro de 1938. No metro, viajei ao lado de três miúdas vestidas de preto e com a cara tapada. Estariam com certeza a tentar furar a barreira policial, para chegar mais perto dos da extrema-direita. Passei a correr pelo memorial do Holocausto, estava tudo calmo. E daí a nada estava sentada na Filarmonia, a ouvir o concerto. Mas isso é tema para outro post.

Já em casa, vi os noticiários do dia. O discurso do presidente da República no Parlamento, afirmando que "quem despreza os direitos humanos e a Democracia, quem desperta de novo o antigo ódio nacionalista, esses não têm de modo algum direito ao preto-vermelho-ouro da bandeira", o aplauso dos deputados da AfD fazendo de conta que aquela mensagem não era para eles, e parte da cerimónia na sinagoga da Rykestrasse, da qual a AfD foi ostensivamente excluída. Angela Merkel referiu o alarmante crescimento do anti-semitismo na Alemanha, e o representante da comunidade judaica na Alemanha, Josef Schuster, falou da AfD sem dizer o nome, tal como antes o presidente da República fizera no Parlamento: "De novo somos confrontados com incendiários. Quero que reparem nestes números: em 2016 houve cerca de 1000 ataques a casas de refugiados, entre os quais mais de sessenta ataques incendiários. Mais de sessenta! São, em média, cinco ataques incendiários por mês a casas onde vivem pessoas que procuram refúgio entre nós."

Lembrei-me da conversa sobre a bandeira israelita nas ruas de Moabit: esta gente também seria capaz de desfilar para proteger os muçulmanos.

Portanto: no 80º aniversário do pogrom nazi contra os judeus, o representante dos judeus alemães tomou a palavra para lembrar as novas vítimas do ódio: os refugiados muçulmanos. E depois há quem se admire do meu optimismo.


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